Foi há 10 anos, mas lembro-me como se fosse hoje: lembro-me do meu vestido azul que tinha sido usado em dias mais felizes, e lembro-me da minha mãe e da minha avó sentadas ao meu lado na sala de espera de um hospital antigo, com um ar sombrio e desmazelado. Estava nervosa, mas estava feliz: achei que seria o fim do castigo que recebi, sem nunca ter percebido muito bem porquê, ainda antes de nascer.
Tinha crescido a ouvir que aquela seria a última cirurgia. Que, quando parasse de crescer, seria possível corrigir o nariz e ficar a parecer normal. Era tudo o que eu queria: parecer normal, passar despercebida. Deixar de me sentir uma aberração, parar de achar que não merecia o mesmo que as outras porque tinha nascido diferente.
Quando me sentei frente a frente com a médica, naquele hospital com as paredes meio descascadas, não ouvi nada do que esperava ouvir: disse-me que o meu caso seria muito complexo, que seriam sempre necessárias, pelo menos, duas cirurgias, e que a probabilidade de ficar pior era grande.
Um bocadinho de mim morreu naquele hospital decrépito. Morremos sempre um bocadinho quando perdemos a esperança.
Lembro-me como se fosse hoje do quanto chorei naquele dia. Eu, que nunca chorava à frente de ninguém, fui incapaz de me controlar: ia ser sempre assim, afinal. Ia continuar a viver convencida de que era menos merecedora do amor, que as pessoas tinham razões válidas para gozarem comigo, que nunca iria saber o que era sentir-me bonita.
Passaram muitos anos.
Em 2018 ou 2019, o meu namorado encontrou um cirurgião plástico especialista em rinoplastia no instagram de forma mais ou menos aleatória, e começou a seguir o trabalho dele. Os resultados eram muito bons, mas nenhum nariz se parecia com o meu. Nem um.
Demorei uns bons meses a ganhar coragem para marcar consulta: disse-me que de facto não havia milagres porque a minha base era inexistente, mas havia espaço para melhorar. Acreditava ser possível obter um resultado muito aceitável. E eu voltei a sonhar. Só um bocadinho, mas voltei.
Avancei com a cirurgia?
Não, claro que não: sabia que os meus patrões da altura já não estavam nada contentes pela ousadia de faltar ao trabalho uma tarde inteira para ir a uma consulta em outro distrito, não queria imaginar o drama que seria se eu ficasse de baixa por conta de uma cirurgia estética. Resolvi esperar só mais uns meses - e depois começou a saga da pandemia e o sonho ficou debaixo do tapete outra vez.
Aproveitei a boleia do layoff para sair da clínica onde era miserável, consegui um emprego que adorava mas era temporário, e a coisa demorou a estabilizar. Depois, ao vírus e à ideia de que não fazia sentido avançar para um procedimento não urgente naquela fase, somava-se o medo mais ou menos infundado por o quão longa a cirurgia teria de ser e, principalmente, o medo de investir tanto dinheiro e não valer a pena. As palavras daquela primeira médica ainda me ecoavam nos ouvidos.
E com isto tudo, passaram-se 3 anos. Mais 3 anos da minha existência sabotados por todos os sentimentos negativos que tinha sobre mim mesma.
Só em março do ano passado é que respirei fundo e, a medo, marquei outra consulta. Finalmente. E, em novembro, estava a olhar para as luzes do bloco enquanto a anestesista me perguntava para onde queria viajar. Respondi que só queria acordar bonita, e ela apagou-me durante 6 horas.
Se pudesse escolher uma sensação para ficar em loop para toda a eternidade, seria a aquela mistura de paz e felicidade que senti no recobro. Nem sequer conseguia dormir. Estava miserável, com uma dor de costas horrível por causa daquela maca duríssima do bloco, rouca, com uma ferida gigante no lábio e cheia de sede por causa das horas entubada e com os pés dormentes - o que só passou uns dois ou três dias depois - mas posso jurar que nunca estive tão feliz como naquele momento.
E no dia a seguir, ouvi o médico dizer exatamente o que, há uns dois anos, tinha escrito numa folha solta de um caderno qualquer, numa tentativa de fazer a "carta mágica" que tinha ouvido alguém falar no tiktok: ficou muito melhor do que pensei que seria pos
As semanas que se seguiram não foram fáceis: de repente, sentia-me mais vulnerável do que nunca porque não estava pronta para o julgamento alheio. Estava feliz com o resultado mas o inchaço ainda fazia com que houvessem muitas variações ao longo do dia, e tinha medo de que me dissessem que não tinha valido a pena o esforço para continuar com um nariz feio: eu não precisava do nariz da barbie, só queria passar despercebida. E olhem... consegui.