quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

11.11.22

Foi há 10 anos, mas lembro-me como se fosse hoje: lembro-me do meu vestido azul que tinha sido usado em dias mais felizes, e lembro-me da minha mãe e da minha avó sentadas ao meu lado na sala de espera de um hospital antigo, com um ar sombrio e desmazelado. Estava nervosa, mas estava feliz: achei que seria o fim do castigo que recebi, sem nunca ter percebido muito bem porquê, ainda antes de nascer.

Tinha crescido a ouvir que aquela seria a última cirurgia. Que, quando parasse de crescer, seria possível corrigir o nariz e ficar a parecer normal. Era tudo o que eu queria: parecer normal, passar despercebida. Deixar de me sentir uma aberração, parar de achar que não merecia o mesmo que as outras porque tinha nascido diferente. 

Quando me sentei frente a frente com a médica, naquele hospital com as paredes meio descascadas, não ouvi nada do que esperava ouvir: disse-me que o meu caso seria muito complexo, que seriam sempre necessárias, pelo menos, duas cirurgias, e que a probabilidade de ficar pior era grande.

Um bocadinho de mim morreu naquele hospital decrépito. Morremos sempre um bocadinho quando perdemos a esperança.

Lembro-me como se fosse hoje do quanto chorei naquele dia. Eu, que nunca chorava à frente de ninguém, fui incapaz de me controlar: ia ser sempre assim, afinal. Ia continuar a viver convencida de que era menos merecedora do amor, que as pessoas tinham razões válidas para gozarem comigo, que nunca iria saber o que era sentir-me bonita.

Passaram muitos anos.
Em 2018 ou 2019, o meu namorado encontrou um cirurgião plástico especialista em rinoplastia no instagram de forma mais ou menos aleatória, e começou a seguir o trabalho dele. Os resultados eram muito bons, mas nenhum nariz se parecia com o meu. Nem um. 

Demorei uns bons meses a ganhar coragem para marcar consulta: disse-me que de facto não havia milagres porque a minha base era inexistente, mas havia espaço para melhorar. Acreditava ser possível obter um resultado muito aceitável. E eu voltei a sonhar. Só um bocadinho, mas voltei.

Avancei com a cirurgia? 
Não, claro que não: sabia que os meus patrões da altura já não estavam nada contentes pela ousadia de faltar ao trabalho uma tarde inteira para ir a uma consulta em outro distrito, não queria imaginar o drama que seria se eu ficasse de baixa por conta de uma cirurgia estética. Resolvi esperar só mais uns meses - e depois começou a saga da pandemia e o sonho ficou debaixo do tapete outra vez.

Aproveitei a boleia do layoff para sair da clínica onde era miserável, consegui um emprego que adorava mas era temporário, e a coisa demorou a estabilizar. Depois, ao vírus e à ideia de que não fazia sentido avançar para um procedimento não urgente naquela fase, somava-se o medo mais ou menos infundado por o quão longa a cirurgia teria de ser e, principalmente, o medo de investir tanto dinheiro e não valer a pena. As palavras daquela primeira médica ainda me ecoavam nos ouvidos.

E com isto tudo, passaram-se 3 anos. Mais 3 anos da minha existência sabotados por todos os sentimentos negativos que tinha sobre mim mesma. 

Só em março do ano passado é que respirei fundo e, a medo, marquei outra consulta. Finalmente. E, em novembro, estava a olhar para as luzes do bloco enquanto a anestesista me perguntava para onde queria viajar. Respondi que só queria acordar bonita, e ela apagou-me durante 6 horas.

Se pudesse escolher uma sensação para ficar em loop para toda a eternidade, seria a aquela mistura de paz e felicidade que senti no recobro. Nem sequer conseguia dormir. Estava miserável, com uma dor de costas horrível por causa daquela maca duríssima do bloco, rouca, com uma ferida gigante no lábio e cheia de sede por causa das horas entubada e com os pés dormentes - o que só passou uns dois ou três dias depois - mas posso jurar que nunca estive tão feliz como naquele momento.

E no dia a seguir, ouvi o médico dizer exatamente o que, há uns dois anos, tinha escrito numa folha solta de um caderno qualquer, numa tentativa de fazer a "carta mágica" que tinha ouvido alguém falar no tiktok: ficou muito melhor do que pensei que seria pos

As semanas que se seguiram não foram fáceis: de repente, sentia-me mais vulnerável do que nunca porque não estava pronta para o julgamento alheio. Estava feliz com o resultado mas o inchaço ainda fazia com que houvessem muitas variações ao longo do dia, e tinha medo de que me dissessem que não tinha valido a pena o esforço para continuar com um nariz feio: eu não precisava do nariz da barbie, só queria passar despercebida. E olhem... consegui.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

da vida, da morte, e da ampulheta que divide as duas.

Os últimos dias foram particularmente difíceis e sinto que me escondi num casulo para concluir coisas que deveriam ser óbvias - e são, na sua maioria - para todos nós, mas arrumamo-las numa caixa no sótão porque não dá jeito pensar nelas. É desagradável pensar naquele pormenor chato da vida, que é o facto de ela não ser eterna. 

Poucos dias antes do natal, um parente mais ou menos afastado em termos de consanguinidade mas por quem sinto um grande carinho porque me lembro dele na minha vida desde que me lembro de mim, recebeu um diagnóstico de cancro. E eu fiz o óbvio: no meio do choque, tentei perceber do que se tratava com os meios de que dispunha - e o dr google, sempre tão dramático, talvez por ser natal até me deu boas notícias. Era um tipo de cancro com um bom prognóstico, ainda podia ficar tudo bem. 

Usei e abusei dessa ideia, para mim e para os outros. Porque precisava. Vale tudo para salvarmos as pessoas de quem gostamos, mesmo que seja só nas nossas cabeças, só por mais cinco minutos.

E depois chegou janeiro.
Janeiro trouxe outra consulta, o resultado da biópsia e uma combinação de palavras que esperamos nunca ouvir sobre um dos nossos: cuidados paliativos.

É um cancro raro, galopante, que já lhe começa a roubar a mobilidade. E, em menos de nada, uma pessoa relativamente saudável até então, está a ser mastigada por uma doença que ninguém sabe muito bem de onde veio mas instalou-se e tomou as rédeas da vida dele sem pedir permissão.

Hoje, escrevo-o aqui mas ainda não aceitei. Estou claramente na primeira fase do luto, a negação, e ainda espero por um milagre qualquer. Sou incapaz de aceitar que se fale da morte sem se tentar o que quer que seja para prolongar a vida primeiro - até à data, ainda nada foi feito. E eu, (recém) otimista, tendo a esperar pela salvação na última curva, por aquele golpe magistral da sorte que volta a virar a ampulheta e a entregar-lhe mais uns anos de vida. Porque merece. Ainda lhe faltavam uns poucos para a morte ser aceitável.

O que sinto é sobretudo ansiedade.
Oscilo entre a antecipação da perda e a fé numa força qualquer - ou num erro médico, que têm todo o direito de errar também. Calo a voz que me fala do que é visível para me agarrar ao lado mais irracional da esperança. Mas depois existe todo um outro lado, talvez mais egoísta, talvez mais medroso, que é o lado que acabou de ser relembrado de que a vida é isto mesmo. Hoje é e amanhã não é. Sabemos disto desde sempre, crescemos a ser ensinados das inevitabilidades da nossa existência, mas ignoramo-las o mais que podemos enquanto nos é possível. Até que acontece na porta ao lado.

E foi aqui que me fechei no meu casulo. 
Comecei a ter crises de ansiedade, com medo dos segredos que poderão encerrar cada um dos corpos de todos os que me são mais próximos - eu incluída. Fui invadida pelo terror de poder voltar a ouvir a mesma combinação de palavras de forma súbita e inesperada, e não poder fazer absolutamente nada em contrário. Mas a verdade é que também de nada me adianta permitir esta angústia, porque o que tiver de ser, será.

Depois, veio o pensamento óbvio sobre a forma como vagueamos pelo mundo à espera de que a vida seja outra coisa qualquer. Escrevi sobre isso na passagem de ano, ainda antes de saber que este seria o próximo capítulo: o meu principal objetivo é viver sem pressa. Estou cansada de às oito da manhã já só pensar nas cinco da tarde, às segundas só querer as sextas e passar a vida a ansiar pelas próximas férias. Até elas acabarem, e recomeçarmos do zero.

Já tinha percebido que viver assim é estar meio morto. Perde-se tempo nessa quase apneia para nem sentir demasiado o que se passa, até ser outra hora, outro dia, outro mês. E de repente é natal, passou mais um ano, o tempo passou mas os dias contaram para muito pouco. 

Apetece-me acabar com esse marasmo inquietante de quem se acha imortal, de quem pensa que tem sempre tempo para começar a viver, lá mais para a frente, que depois de velhos e reformados é que a vida é boa.

Eu quero que a minha vida seja boa hoje. Ou melhor, ontem.
Quero agarrar o tempo com a mesma intensidade com que agora o fito em cada visita - a ele, ao parente doente - como quem o quer segurar neste mundo para sempre. Porque quero, oh se quero.