sábado, 21 de março de 2020

late night secrets

Quatro da manhã.
Poderia ser só o início de uma música pimbó-moderna, mas foi a hora a que decidi dar a mão à palmatória e aceitar que de nada me adiantaria continuar às voltas na cama; às tantas, não fazia a menor ideia se a dor de cabeça excruciante se devia ao facto de não conseguir dormir, ou se era ela quem não me deixava adormecer. Por via das dúvidas, vesti um fato de treino por cima do pijama e saí - senti-me melhor no mesmo segundo em que inspirei o ar gélido da madrugada.

Não sabia para onde ir, e francamente também não queria ir a lado nenhum. Só queria afastar-me das paredes do meu t1 minúsculo que parecem querer sufocar-me. Fala-se muito da quantidade de divórcios que se seguirão, motivados pela quarentena, mas ninguém fala realmente sobre o teste que isto é para as relações: de repente, estamos confinados à nossa casa, a casa que tanto queríamos ter ainda há uns meses, e já não nos podemos ver um ao outro. Vamos dançando entre divisões por ser a melhor forma de evitar o choque, porque eu preciso de alguém para conversar e porque a vida dele, o trabalho dele, não parou. Não ficou em suspenso, como a minha. E parece que já nada bate certo aqui.

As ruas estavam desertas, como seria de esperar. Violei umas quantas regras e sentei-me num baloiço para crianças (N.A.: não, não toquei na cara depois e lavei as mãos assim que cheguei a casa, bem como dei um banho de álcool ao telemóvel), numa nota de felicidade fútil por ainda caber num. Provavelmente, quem ouviu o chiar lento do balançar a meio da noite, julgou que seria só mais um dos takes para o filme de terror que estamos a viver, mas não fui capaz de não aproveitar para me sentir uma miúda outra vez. Do nada, ali, no silêncio, a maior prova da minha liberdade foi poder voltar a sentir-me como se tivesse 5 anos. 

Pensei na minha mãe e no sermão descomunal que me daria se algum dia viesse a saber que fui sozinha para a rua, àquela hora, numa altura em que será demasiado fácil tramar os incautos. E sorri. Sorri porque também estava com algum medo, para vos ser fraca, mas o medo tem sido a palavra de ordem dos últimos dias, das últimas semanas, e chegámos a uma altura em que mais vale sentir medo de algo que nos faça sentir vivos.

Quatro da manhã e um casal observava a minha excursão noturna, estático, da varanda: durante alguns segundos, passaram-me pela cabeça vários cenários, que acabavam todos comigo assassinada, num parque infantil. Mas depois senti só o aconchego de perceber que, afinal, não fui só eu quem perdeu o norte às horas e aos dias. Dois andares acima, está um cartaz preso na janela que diz "Jesus está voltando". Ri-me. Espero que venha para o benfica, então.

Começou a chover. Primeiro eram só meia dúzia de gotitas gordas, mas depois o céu começou a chorar torrencialmente. Eu não: por essa altura já tinha esgotado o stock de lágrimas - entretanto, já reposto - e só me restava o desânimo a arrastar-me rua acima. Não lhe fugi, confesso; também não apareceu o moço para encerrarmos as discussões num beijo apaixonado debaixo da chuva, porque afinal não estamos realmente a viver um filme. Caminhei até ao abrigo do prédio, e deixei-me ficar, só a ver os pingos de água a juntarem-se no chão.

Ouvia-se o chilrear dos pássaros - a princípio, julguei-me louca por os julgar a cantar a meio da noite, mas depois percebi que é um segredo bem guardado da cidade adormecida: afinal, daqui também se ouve o mundo quando se tira o ruído de fundo. E ao longe, bem ao longe, pareceu-me distinguir o canto inconfundível do cuco; lembrei-me da minha mãe outra vez, que sempre disse que, se em março o cuco não vier, morreu ele ou a mulher.

Fico contente por estarem os dois bem.

sexta-feira, 20 de março de 2020

sexta feira, pelo 983879º dia de quarentena

não fiz exercício, não tirei o pijama e, para vos ser franca, nem sequer cozinhei: almocei leite com cereais e há um bocado comi uns restos de sopa. tenho fome, portanto.
também não li nem vi nenhum filme - hoje deixei-me levar pelo medo e entreguei-me, pela primeira vez, às lágrimas. chorei por me sentir sozinha, chorei por não saber quando isto acaba, chorei porque o dinheiro não estica e este mês há de vir bem curto. chorei porque me dei conta de que poderei vir a ficar desempregada nos próximos meses e, por mais que não goste do meu trabalho, paga-me as contas ao fim do mês, e não vai ser tão simples assim encontrar outro depois de tudo isto. chorei pelos planos que necessitam de ser adiados para depois, para quando houver dinheiro, ou para tempos mais estáveis. e chorei até pela falta que me faz ver a minha família, que já vai para duas semanas desde que lhes pus a vista em cima.

pode ser que amanhã seja melhor, que cozinhe uma refeição decente, que saia do quarto, que chore menos.

este não é o relato mais bonito, mas é necessário porque estou capaz de jurar que não serei a única a sentir-se assim, e é preciso não fingir que isto está a ser divertido e estamos todos a ser muito produtivos; há dias que estou com uma dor de cabeça que mal me deixa abrir os olhos e falta-me o ar muitas vezes porque tenho tido crises de ansiedade avulso. 

aguardemos por relatos mais felizes.

terça-feira, 17 de março de 2020

do tempo.

Foi há precisamente um mês que voltei aqui, cheia de boas intenções de não deixar o gosto pelas palavras fugir-me outra vez - mas depois voltou a faltar-me o tempo, e a energia, e a vontade, e a imaginação. Até que a vida ou o mundo nos trancou em casa. Falemos do tempo, então.

Quando deixei de (vos) escrever, tinha acabado de aceitar o meu atual emprego e, por me deslocar em transportes públicos, passava mais de 12 horas por dia fora de casa. Durante a semana, não existia para mais do que trabalhar, comer, tomar banho e ir para a cama novamente - pelo meio, tentava manter-me acordada o tempo suficiente para continuar à procura de um trabalho fora dali. Aos fins de semana, única altura em que conseguia ver o monsieur, tinha de encontrar tempo para fazer tudo o que tinha de ser feito, e para viver, finalmente, vingando todos aqueles outros dias em que me arrastava numa semi-existência.

Até outubro.
Em outubro embarquei na primeira grande mudança da minha vida quando vim viver com o monsieur, e achei que iria retratar o momento em palavras, para me lembrar exatamente do que estava a sentir. Pensei que iria querer falar-vos sobre como ninguém nos lembra de que temos de comprar um piaçaba ou de quão crucial parece ter de decidir de que lado da cama iríamos dormir ou em que gaveta iriam ficar as meias. Mas, mais uma vez, a mudança foi uma loucura, e o tempo pareceu-me sempre curto demais para refletir sobre ele.

Então, quando iria ter mais tempo livre, comecei a correr; tinha estado sedentária durante meses, sentia-me péssima em relação a isso e parecia-me um crime não aproveitar a oportunidade de correr com o mar mesmo ao lado. E fui. Do oito ao oitenta em menos de nada: passei de sedentária a correr quase 40km por semana.Todas as semanas, com chuva, com sol,com vento, com nevoeiro. Doente. às sete da manhã ou às dez da noite. Esta lontra leva-se bastante a sério, é preciso que se note.

Isto para explicar que, mesmo quando começou a parecer que o dia tinha muitas mais horas para me oferecer, eu ocupei-as todas também. Era a corrida, e o jantar que já não aparecia feito na mesa ou as compras para fazer. E quando o tempo me sobrava, era para me entregar a um livro ou a uma série, porque sempre dá menos trabalho do que ver surgir no ecrã as minhas próprias palavras.

Entretanto, vieram as dores: primeiro o pé, depois a anca. Inicialmente, ignorei-as - por mais de um mês para vos ser franca. Sentia-me tão bem a correr, ajudava-me tanto a aliviar as dores não físicas, que me custava parar - até que, em meados de janeiro, fui obrigada a assumir que não poderia continuar assim porque começava a afetar a minha capacidade de me manter em pé no trabalho. E parei.

Poderia até ter aproveitado esse momento para voltar ao blog, mas a necessidade de não ter tempos mortos ou de reflexão venceu sempre: inscrevi-me no ginásio. E fiquei meio que obcecada com isso.

Planeava ir três vezes por semana, mas fui sempre seis: descobri que melhorava muito o meu humor se começasse o meu dia a treinar, então comecei a ir sempre às 7h30. Todos os dias, menos ao sábado, que ia quando me apetecia. Noutros dias, se estava sozinha e com tempo de sobra, voltava a ir ao final do dia porque gosto de algumas das aulas de grupo.

E assim, voltei exatamente ao mesmo ponto: faltava-me tempo, porque no pouco tempo livre que tinha, extra necessidades, extra obrigações, aproveitava para não fazer porra nenhuma já que tudo o resto me levava a energia.

Até que chegámos aqui.
O ginásio está fechado, a clínica onde trabalho está fechada, os supermercados são para evitar. Não posso sequer ir correr no paredão, e o mais perto que estive de um passei foi sair de casa para ir ao lixo.
Hoje, o tempo que tantas vezes me tem parecido curto, sobeja - e ninguém parece lembrar-se de todas as vezes que implorou para que este momento chegasse, para termos mais tempo para dormir, para estar no sofá, para pôr filmes e séries em dia, para tirar tirar aquele livro cheio de pó da prateleira.

No fundo, por mais que o queiramos, não sabemos lidar com ele: é mais fácil andar num corropio constante sem pensar muito nisso, do que estar parado - deixem-me que vos diga que, em seis meses, esta foi a primeira vez que me dei ao luxo de trazer o computador e o café para a mesa da varanda, e escrever. E sabe bem, porra: juro-vos que parece que recuei uns anos no tempo, e que não há quarentena nem vírus nem qualquer catástrofe eminente acontecer fora daqui. 

Por isso, vou andar por aqui: talvez ninguém se vá dar conta, talvez ninguém queira ler, mas não faz mal. Estou em casa.