Quatro da manhã.
Poderia ser só o início de uma música pimbó-moderna, mas foi a hora a que decidi dar a mão à palmatória e aceitar que de nada me adiantaria continuar às voltas na cama; às tantas, não fazia a menor ideia se a dor de cabeça excruciante se devia ao facto de não conseguir dormir, ou se era ela quem não me deixava adormecer. Por via das dúvidas, vesti um fato de treino por cima do pijama e saí - senti-me melhor no mesmo segundo em que inspirei o ar gélido da madrugada.
Não sabia para onde ir, e francamente também não queria ir a lado nenhum. Só queria afastar-me das paredes do meu t1 minúsculo que parecem querer sufocar-me. Fala-se muito da quantidade de divórcios que se seguirão, motivados pela quarentena, mas ninguém fala realmente sobre o teste que isto é para as relações: de repente, estamos confinados à nossa casa, a casa que tanto queríamos ter ainda há uns meses, e já não nos podemos ver um ao outro. Vamos dançando entre divisões por ser a melhor forma de evitar o choque, porque eu preciso de alguém para conversar e porque a vida dele, o trabalho dele, não parou. Não ficou em suspenso, como a minha. E parece que já nada bate certo aqui.
As ruas estavam desertas, como seria de esperar. Violei umas quantas regras e sentei-me num baloiço para crianças (N.A.: não, não toquei na cara depois e lavei as mãos assim que cheguei a casa, bem como dei um banho de álcool ao telemóvel), numa nota de felicidade fútil por ainda caber num. Provavelmente, quem ouviu o chiar lento do balançar a meio da noite, julgou que seria só mais um dos takes para o filme de terror que estamos a viver, mas não fui capaz de não aproveitar para me sentir uma miúda outra vez. Do nada, ali, no silêncio, a maior prova da minha liberdade foi poder voltar a sentir-me como se tivesse 5 anos.
Pensei na minha mãe e no sermão descomunal que me daria se algum dia viesse a saber que fui sozinha para a rua, àquela hora, numa altura em que será demasiado fácil tramar os incautos. E sorri. Sorri porque também estava com algum medo, para vos ser fraca, mas o medo tem sido a palavra de ordem dos últimos dias, das últimas semanas, e chegámos a uma altura em que mais vale sentir medo de algo que nos faça sentir vivos.
Quatro da manhã e um casal observava a minha excursão noturna, estático, da varanda: durante alguns segundos, passaram-me pela cabeça vários cenários, que acabavam todos comigo assassinada, num parque infantil. Mas depois senti só o aconchego de perceber que, afinal, não fui só eu quem perdeu o norte às horas e aos dias. Dois andares acima, está um cartaz preso na janela que diz "Jesus está voltando". Ri-me. Espero que venha para o benfica, então.
Começou a chover. Primeiro eram só meia dúzia de gotitas gordas, mas depois o céu começou a chorar torrencialmente. Eu não: por essa altura já tinha esgotado o stock de lágrimas - entretanto, já reposto - e só me restava o desânimo a arrastar-me rua acima. Não lhe fugi, confesso; também não apareceu o moço para encerrarmos as discussões num beijo apaixonado debaixo da chuva, porque afinal não estamos realmente a viver um filme. Caminhei até ao abrigo do prédio, e deixei-me ficar, só a ver os pingos de água a juntarem-se no chão.
Ouvia-se o chilrear dos pássaros - a princípio, julguei-me louca por os julgar a cantar a meio da noite, mas depois percebi que é um segredo bem guardado da cidade adormecida: afinal, daqui também se ouve o mundo quando se tira o ruído de fundo. E ao longe, bem ao longe, pareceu-me distinguir o canto inconfundível do cuco; lembrei-me da minha mãe outra vez, que sempre disse que, se em março o cuco não vier, morreu ele ou a mulher.
Fico contente por estarem os dois bem.
7 comentários:
Ainda não lhe perdeste o jeito... ou será da dor de corno, inspiradora de cantores românticos (românticos e cornudos).
Comecei a ler isto no telemóvel, na casa de banho, mas achei uma traição. Depois do que te disse no último comentário, senti-me um traidor a cagar para um texto à moda da patrícia do "pê" pequeno, escrito quase a pedido (sei que não foi, nem me sinto musa inspiradora da tua escrita). Sinto-me só um passarinho na gaiola e penso o dia inteiro quando e como é que isto vai acabar.
Há pouco "a minha Maria" dizia-me: estás a ficar assustado. Quando isto começou, estavas tão otimista...
Não sei bem se estou assustado. Acho que não... apenas me sinto um condenado no corredor da morte, sem saber se vou para a forca, ou para a cadeira elétrica. É esta incerteza que me deixa nervoso. Na minha idade, não é a morte que me assusta. Assusta-me o modo como irei morrer. E para quem já sentiu a aflição de querer respirar e correr a casa a despir a roupa e à procura de uma janela, a ideia de voltar a passar pelo mesmo, é angustiante.
Quem me dera ter coragem de parar o carro a meio da ponte, saltar e morrer com uma lufada de ar fresco nas trombas. Se for verdade o que ouvi dizer, que a coragem se treina, talvez ainda haja esperança para mim...
Não é exatamente como costumava ser, mas tenho muitas saudades de escrever mesmo :) escrevi a maior parte deste post sentada no baloiço de que falo, só lhe dei uns retoques hoje, acrescentei umas coisas. Mais real do que isto é difícil :)
Eu também estava muito descontraída ao início. Fartava-me de gozar com o desespero dos jornalistas para que o vírus chegasse a portugal... acho que não tive a verdadeira noção da gravidade da situação até as coisas começarem a fechar. Agora, não tenho a certeza se estamos assim por ser necessário, ou se por ser assim que as notícias nos deixam...
A única coisa que te posso dizer é o que digo a mim mesma todos os dias: vai correr tudo bem. Também estou com bastante medo pela minha família mais chegada, já que abundam doenças respiratórias, e outras que tais, que os colocam no grupo de risco. Havemos de sair desta.
Achei piada por teres "escrito" grande parte do texto sentada no baloiço, às 4 horas da madrugada, porque eu também escrevia (escrevo) assim. Sabes que só estudei alguma coisa de jeito depois dos 30 anos. Estudávamos na empresa (que dava as salas e pagava aos professores e nós íamos fazer os exames nacionais a uma escola, como alunos autopropostos). Quando o professor mandava escrever uma composição em casa, não era fácil. Trabalhávamos das 8 às 17 e tínhamos aulas das 17 às 20. Sobrava pouco tempo para fazer "redações" em casa e eu era dos poucos que as fazia. Primeiro porque gostava de português: segundo, porque conseguia "alinhavar" tudo na cabeça enquanto ia no autocarro e quando chegava a casa, só tinha que "passar a limpo" para o papel (nos anos 80 não havia computadores). Continuo a escrever assim. Primeiro faço o rascunho, de cabeça.
Olha, não vou corrigir isto. Se tiver erros, vai ao Fecebook e envergonha-me. eheheheh
Não sei muito bem o que te dizer senão para além de "como sempre as tuas palavras são lindíssima e verdadeiras" e "espero que isto passe rápido e bem"
São tempos...surreais
À dias lembrei-me de voltar a abrir a conta blogger, anos e anos depois de ter abandonado estas bandas, para reler o que tinha escrito. Hoje voltei para ver quem ainda permanecia por cá. E tu és uma das meia dúzia de pessoas, da minha extensa lista de leitura, que ainda permanece. Reconheço o nome do blog mas não a pessoa por detrás das palavras. Nem me recordo se era recorrente trocarmos comentários à uns 7/6 anos atrás. É bom ver que ainda há gente que volta aqui a este cantinho, como porto de abrigo. E pelo que li, ainda não perdeste o jeito com as palavras. Muita força para esta fase em que todos nos encontramos!
Zé, quando me apetece, tenho de o fazer logo ou, quando chego a casa e quero anotar, já me embrulho toda com as palavras :)
Anónimo, fico com uma ligeira inflamação no ego, confesso :)
Segundo Anónimo, e começa a ser desesperante não lhes ver o fim.
Ju, também não faço ideia :) continuo por aqui porque ainda tenho algum amor pelas palavras, mas isto anda a meio gás. A moda dos blogs passou e isto agora parece um sítio abandonado. Obrigada e igualmente!
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