terça-feira, 17 de março de 2020

do tempo.

Foi há precisamente um mês que voltei aqui, cheia de boas intenções de não deixar o gosto pelas palavras fugir-me outra vez - mas depois voltou a faltar-me o tempo, e a energia, e a vontade, e a imaginação. Até que a vida ou o mundo nos trancou em casa. Falemos do tempo, então.

Quando deixei de (vos) escrever, tinha acabado de aceitar o meu atual emprego e, por me deslocar em transportes públicos, passava mais de 12 horas por dia fora de casa. Durante a semana, não existia para mais do que trabalhar, comer, tomar banho e ir para a cama novamente - pelo meio, tentava manter-me acordada o tempo suficiente para continuar à procura de um trabalho fora dali. Aos fins de semana, única altura em que conseguia ver o monsieur, tinha de encontrar tempo para fazer tudo o que tinha de ser feito, e para viver, finalmente, vingando todos aqueles outros dias em que me arrastava numa semi-existência.

Até outubro.
Em outubro embarquei na primeira grande mudança da minha vida quando vim viver com o monsieur, e achei que iria retratar o momento em palavras, para me lembrar exatamente do que estava a sentir. Pensei que iria querer falar-vos sobre como ninguém nos lembra de que temos de comprar um piaçaba ou de quão crucial parece ter de decidir de que lado da cama iríamos dormir ou em que gaveta iriam ficar as meias. Mas, mais uma vez, a mudança foi uma loucura, e o tempo pareceu-me sempre curto demais para refletir sobre ele.

Então, quando iria ter mais tempo livre, comecei a correr; tinha estado sedentária durante meses, sentia-me péssima em relação a isso e parecia-me um crime não aproveitar a oportunidade de correr com o mar mesmo ao lado. E fui. Do oito ao oitenta em menos de nada: passei de sedentária a correr quase 40km por semana.Todas as semanas, com chuva, com sol,com vento, com nevoeiro. Doente. às sete da manhã ou às dez da noite. Esta lontra leva-se bastante a sério, é preciso que se note.

Isto para explicar que, mesmo quando começou a parecer que o dia tinha muitas mais horas para me oferecer, eu ocupei-as todas também. Era a corrida, e o jantar que já não aparecia feito na mesa ou as compras para fazer. E quando o tempo me sobrava, era para me entregar a um livro ou a uma série, porque sempre dá menos trabalho do que ver surgir no ecrã as minhas próprias palavras.

Entretanto, vieram as dores: primeiro o pé, depois a anca. Inicialmente, ignorei-as - por mais de um mês para vos ser franca. Sentia-me tão bem a correr, ajudava-me tanto a aliviar as dores não físicas, que me custava parar - até que, em meados de janeiro, fui obrigada a assumir que não poderia continuar assim porque começava a afetar a minha capacidade de me manter em pé no trabalho. E parei.

Poderia até ter aproveitado esse momento para voltar ao blog, mas a necessidade de não ter tempos mortos ou de reflexão venceu sempre: inscrevi-me no ginásio. E fiquei meio que obcecada com isso.

Planeava ir três vezes por semana, mas fui sempre seis: descobri que melhorava muito o meu humor se começasse o meu dia a treinar, então comecei a ir sempre às 7h30. Todos os dias, menos ao sábado, que ia quando me apetecia. Noutros dias, se estava sozinha e com tempo de sobra, voltava a ir ao final do dia porque gosto de algumas das aulas de grupo.

E assim, voltei exatamente ao mesmo ponto: faltava-me tempo, porque no pouco tempo livre que tinha, extra necessidades, extra obrigações, aproveitava para não fazer porra nenhuma já que tudo o resto me levava a energia.

Até que chegámos aqui.
O ginásio está fechado, a clínica onde trabalho está fechada, os supermercados são para evitar. Não posso sequer ir correr no paredão, e o mais perto que estive de um passei foi sair de casa para ir ao lixo.
Hoje, o tempo que tantas vezes me tem parecido curto, sobeja - e ninguém parece lembrar-se de todas as vezes que implorou para que este momento chegasse, para termos mais tempo para dormir, para estar no sofá, para pôr filmes e séries em dia, para tirar tirar aquele livro cheio de pó da prateleira.

No fundo, por mais que o queiramos, não sabemos lidar com ele: é mais fácil andar num corropio constante sem pensar muito nisso, do que estar parado - deixem-me que vos diga que, em seis meses, esta foi a primeira vez que me dei ao luxo de trazer o computador e o café para a mesa da varanda, e escrever. E sabe bem, porra: juro-vos que parece que recuei uns anos no tempo, e que não há quarentena nem vírus nem qualquer catástrofe eminente acontecer fora daqui. 

Por isso, vou andar por aqui: talvez ninguém se vá dar conta, talvez ninguém queira ler, mas não faz mal. Estou em casa.

4 comentários:

disse...

Estamos em casa. Custa-me mais do quando me levantava às 6 da manhã para ir trabalhar. Agora vou de fugida comprar qualquer coisa que se coma (porque nunca fui de açambarcar), mas nem para isso tenho disposição. Voltei a andar de carro para me despachar com as compras e estou numa depressão que nem o anti-ciclone dos Açores consegue preencher.
Falando de ti (foi para isso que aqui vim lol), acho que nem quando arranjares uma vida sedentária vais viver menos angustiada. Sempre essa angústia, sempre de mal com o mundo... não tenho coragem nem moral para te dar conselhos. Como dizer-te para teres esperança, que um dia tudo vai mudar, se eu ando à décadas a tentar e não consigo?!
Escreve mais. Tenho saudades de quando publicavas um texto ou dois por dia, cada um melhor do que o outro. Quando passo por aqui e encontro sempre o mesmo texto dos últimos 6 meses, ainda fico mais com a sensação de que está tudo a acabar. E agora com esta catástrofe que se abateu sobre a humanidade, o nosso mundo que em cada dia nos parece diferente do dia anterior, nunca voltará a ser o mesmo.
Tenho um mau pressentimento de que isto ainda vai sobrar para mim... que já mal posso com uma constipação.
Tudo de bom para ti, Patrícia. :(

ernesto disse...

Nem eu queria uma vida sedentária :) tenho ocupado o meu tempo livre o mais que posso com algo que me dá prazer, era a isso que me referia, só. Agora, sentir esta necessidade para abafar todo o resto do tempo em que não me sinto tão feliz assim... isso é igualmente verdade. Mas em momento queria uma vida sedentária.

Espero que não. Protege-te o mais possível. Estar em casa é chato, é uma merda, mas penso que quanto mais depressa o fizermos todos, tanto quanto possível, mais depressa nos livramos disto.

Que corra tudo bem. Para ti, para mim e para todos os que nos são importantes :\

helena disse...

Se há "casa" onde eu gosto de estar é esta, gosto do que leio e da anfitriã, por isso, vou continuar a entrar.

Também já corri todos os dias e sentia-me muito bem, gostava mesmo muito, fazia-o de manhã bem cedo, mas depois a vida trocou-me as voltas e deixei de correr, talvez volte ou não.

Um abraço

Princess Cat disse...

Ao menos isto serviu para algumas pessoas abrandarem o ritmo. Sabe bem andar sempre a correr, mas acabamos sempre por deixar alguma coisa para trás.