quinta-feira, 30 de abril de 2020

parece mal dizê-lo.

Passaram (quase) seis semanas; seis semanas em que, na maior parte do tempo, esta casa me parece demasiado pequena para que seja capaz de respirar dentro dela mas que, apercebo-me agora, se transformou no meu forte, no meu porto seguro. Ver o mundo do lado de dentro da janela já não me pesa da mesma forma, e já não me sinto tanto a viver dentro de um aquário desde que me apercebi de que estou demasiado assustada com a ideia de voltar a sair.

Ensinaram-nos o medo.
Ensinaram-nos a refugiarmo-nos nas nossas casas e a desinfetar a nossa própria sombra, não vá o diabo tecê-las: de repente, a perspetiva de um regresso à normalidade, uma normalidade vestida com aspas por tempo indeterminado, não me traz o conforto que achei que sentiria há um mês. Traz o medo.

Há alguns dias que não durmo: ninguém se decide, ninguém avança com a decisão, mas parecem ter todos a expectativa de que o fim do estado de emergência dite a reabertura das clínicas dentárias. E eu acho que não poderíamos começar pior, a confirmar-se, numa altura em que têm de ser dados passos pequeninos até podermos correr grandes distâncias. Parece-me um disparate o regresso a um local onde o perigo de contágio é real, e senti-me obrigada a preparar todo um plano de isolamento para mim mesma. O meu isolamento real começará no dia em que tiver de voltar a trabalhar porque sei que o risco de ficar doente é elevado, e não quero colocar ninguém em perigo - e estou a entrar em pânico por isso.

A incerteza do futuro não me deixa respirar.
Já tinha assumido por aqui o meu desamor pela pela profissão que tenho há quase um ano: nunca fui capaz de gostar, nunca fui capaz de me sentir feliz. E, nos últimos meses, essa não-felicidade tinha começado a transformar-se numa infelicidade e num mal estar geral que me consumia os dias e me devorava as semanas numa pressa constante de viver fora dali, por mais que fossem só dois dias. E aquilo que ninguém ousa assumir, num momento em que se quer que estejamos todos gratos por um regresso, é que estou mais ou menos certa de que voltar, depois de todo este tempo, vai tornar tudo muito mais difícil.

Tenho estado à espera de um milagre: empenhei-me a procurar trabalho, o mais afincadamente possível, numa esperança vã e mais ou menos estúpida de não ter de voltar. De poder chegar ao fim do meu contrato e sair pela porta da frente sem ter de voltar a arrastar-me para lá. Não sou boa no arrasto, não sou adepta do vai-se andando - deixa-me desesperada acordar constantemente com vontade de voltar para a cama, só para não pensar em todas as horas que separam um momento e outro. 

A incerteza do futuro não me deixa respirar porque há uma parte de mim que teme a possibilidade de estar desempregada dentro de um mês, pela não renovação do contrato, e a outra parte de mim teme exatamente o contrário: este é um capítulo que precisa de ser encerrado, mas eu não tenho a coragem de escrever as últimas linhas - temo que possam ser a minha assinatura numa renovação que não desejo, pelo medo de aceitar que nunca vou conseguir sentir-me bem neste lugar e que viver assim nem é bem viver.

[em resposta a alguém que presumo que virá à procura dela: 
raramente sou a primeira a fechar as portas mas, quando o faço, ficam trancadas a sete chaves. a vida foi-me mostrando que há pontas que ficam soltas mesmo. talvez um dia se atem por si, ou talvez não - mas há pouco ou nada no passado que faça questão de trazer para o presente e menos ainda carregar para o futuro. estou a tentar curar o que ainda me dói, e o resto é só isso mesmo: o resto. deixou de me interessar, com toda a honestidade.]

terça-feira, 14 de abril de 2020

o poder das palavras, ou um desabafo tardio para não me esquecer.

Sempre brinquei com a minha sanidade mental, ou com a falta dela, e sempre fiz de conta - mais para mim mesma do que para qualquer outra pessoa - de que tinha tudo sob controlo e conseguiria resolver-me sozinha. Mas estava enganada. Estava enganada e hoje vou escrever sobre isso, porque é importante fazê-lo. Para mim, e para servir de nota para alguém que ainda não tenha chegado lá.

Hoje quero falar-vos da força das palavras, e da forma como temos o poder de mudar a vida de alguém com pouco. Muito pouco. Umas vezes, para melhor. Outras, para um inferno.

Sofri de bullying quando ainda não era fixe sofrer de bullying, ou quando ainda não se tinha arranjado uma etiqueta pomposa para explicar o que acontecia na escola que me fazia chegar a casa e isolar de toda a gente, porque assim era mais fácil fingir que estava tudo bem e era uma miúda feliz, tal como a inocência da idade o pedia. Adormeci a chorar muitas vezes. E, no dia a seguir, repetia o processo.

Para quem for novo por aqui, e ainda não souber, a maior ousadia da minha vida foi ter-me lembrado de vir ao mundo com uma malformação: lábio leporino, um nome tão feio quanto me tenho sentido a minha vida toda. E foi mais ou menos aqui, com este bold move, que os meus problemas começaram. Aparentemente, foi uma má ideia não nascer normal.

Não me bastasse, ainda me lembrei de ser gorda - demorei, mas consegui atingir o patamar da obesidade, para completar o quadro - e os dentes nasceram-me tão tortos, cortesia da malformação, que os centrais faziam um ângulo de 90º. Sem exageros. Em suma, não havia um milímetro do meu corpo que não fosse passível de ser gozado. E, portanto, foi.

Ouvi tudo o que se possa imaginar.
O feia e o gorda eu já tinha como dado adquirido, mas a isso foram-se juntando outras mais, como o nunca ninguém vai gostar de ti!, achas mesmo que alguém vai querer ser visto ao teu lado?, ganhaste o prémio da mais feia da escola, and so on. Primeiro, ouvia isto mas tinha amigos. Depois, esses amigos também passaram a pertencer ao grupo dos que me gozavam. E eu fiquei sozinha.

O secundário foi um inferno.
Ainda hoje me pergunto como saí de lá viva, de tantas vezes ter pensado que raio estaria eu a fazer no mundo: a dada altura, sem nenhum outro motivo aparente além de me ter lembrado de nascer anormal, já não podia andar pelos corredores sem ser gozada. Não podia. Onde quer que fosse,havia sempre alguém a  cochichar, a olhar para mim e a rir-se, ou então a gritar insultos para garantir que eu não iria ficar na dúvida sobre se seria ou não para mim.

A dada altura, comecei a não ir almoçar na cantina e a esconder-me na biblioteca, a refugiar-me nos livros e no blog recém criado, a evitar ao máximo existir além da ficção onde me era permitido sentir normal, e ser apreciada por quem vivia dentro de mim e não pelo corpo feio que o albergava. Até que, mesmo no blog, me comecei a sentir uma fraude - de alguma forma, por algum motivo, comecei a achar que poderia fazer alguma diferença, para quem me lia, o facto de eu não ser normal.

Vivia um inferno, repito.
Nunca quis morrer, mas questionava demasiadas vezes a pertinência da minha existência - tinha uma única pessoa ao meu lado, uma única amiga a quem confiaria a vida, e tudo o resto, a pequena parte que não me gozava, eram pessoas que eu evitava também porque desconfiava de toda a gente e era incapaz de me dar a conhecer, tal era o medo de que se viessem a juntar também à lista de pessoas que me iam torturando lentamente. Não era (só) um feitio de merda, era dor, mas uma dor que eu não queria assumir por julgar ser sinónimo de fraqueza.

Não vos conto isto para que sintam pena, mas para que me entendam: sofri bastante durante aqueles anos. Creio que sofri até mais do que tive a noção na altura, porque eu achava que merecia. Achava que, por algum motivo, tinha alguma culpa por ser diferente, que tinham razão no que diziam sobre mim e que eu teria de me conformar com uma vida de dor e sofrimento, que nunca saberia o que era o amor, que nunca seria mais do que a miúda gorda e feia de quem nunca ninguém iria gostar.

Os anos passaram. 
A única amiga que tinha deixou de o ser também, por motivos que ainda não fui capaz de apurar. E talvez nunca  seja.

Já me cruzei com várias das pessoas que me magoaram, e até fui capaz de sentir que as perdoei, embora não me tenha esquecido. Um por um, não me falha uma cara, não me falha uma memória. E logo eu, que me lembro sempre de tudo. Achei que perdoar era o suficiente. Mas não foi.

Tenho 24 anos. 25, dentro de pouco mais de dois meses.
Já não sou obesa, já não tenho os dentes (tão) tortos. Até já me fiz à vida e conquistei a minha independência (relativa, vá, que não conseguiria se não tivesse com quem partilhar as despesas). Tenho um namorado incrível há três anos. E não superei nada do que me aconteceu lá atrás.

Sou desconfiada, insegura, ciumenta.
Na minha cabeça ainda está enraizada a ideia de que nunca vou ser boa o suficiente, porque sou diferente. Três anos depois, com todas as tormentas que passámos para conseguir ficar juntos, eu continuo a sentir que vou ser trocada a qualquer instante por outra que seja normal. Porque, afinal, nunca ninguém vai gostar de ti. Três anos depois, eu ainda passo a vida a perguntar o que é que os amigos dizem de mim, se alguém comentou, porque ninguém vai querer ser visto ao teu lado.

Estou certa de que nenhuma daquelas pessoas faz a menor ideia dos danos que as palavras me foram causando e da forma como, ainda hoje, ecoam na minha vida. Tornei-me numa pessoa doentia, permanentemente assustada com o medo de perder, e nas últimas semanas comecei a trepar paredes porque a quarentena me deixou com muito, com demasiado, tempo livre para criar os meus próprios cenários dantescos.

Sou assim desde sempre, mas agora consegui tornar a convivência comigo mesma absolutamente insuportável - e, então, tive de assumir. Tive de ser capaz, finalmente, de aceitar que precisava de ajuda. Que, por mais infantil que me faça sentir não conseguir ultrapassar anos e anos de bullying, porque isso parece coisa de miúda mimada, não consegui. 

Isto condicionou todas as minhas relações interpessoais, tornou-me numa pessoa que não quero continuar a ser. Estou cansada de sê-lo, porque é desgastante não conseguir gostar de mim e não ser capaz de ver a pessoa que ele vê, há três anos, e de quem conseguiu gostar apesar de vir com uma bagagem tão grande.

Decidi, finalmente, pedir ajuda profissional - e estou a escrever sobre isto porque importa. Porque precisei de muitos anos para aceitar que preciso dela, que não fui capaz de lidar sozinha com tudo aquilo por que passei, e que não há problema com isso. Que investir na saúde mental não é um desperdício de dinheiro e que não posso continuar a envergonhar-me por os meus traumas incluírem os corredores da escola e eu achar que não faz sentido que ainda me causem mossa quando já atingi o patamar da vida adulta.

Quero ser melhor do que tenho sido até hoje: melhor pessoa, melhor amiga, melhor namorada. Quero despedir-me da ideia de que não valho nada, antes de que tenha de me despedir das pessoas porque tornei a convivência insustentável. Quero ser outra e, acima de tudo, curar-me.

E está tudo bem se não o consegui sozinha. Vai ficar tudo bem.