quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

da vida, da morte, e da ampulheta que divide as duas.

Os últimos dias foram particularmente difíceis e sinto que me escondi num casulo para concluir coisas que deveriam ser óbvias - e são, na sua maioria - para todos nós, mas arrumamo-las numa caixa no sótão porque não dá jeito pensar nelas. É desagradável pensar naquele pormenor chato da vida, que é o facto de ela não ser eterna. 

Poucos dias antes do natal, um parente mais ou menos afastado em termos de consanguinidade mas por quem sinto um grande carinho porque me lembro dele na minha vida desde que me lembro de mim, recebeu um diagnóstico de cancro. E eu fiz o óbvio: no meio do choque, tentei perceber do que se tratava com os meios de que dispunha - e o dr google, sempre tão dramático, talvez por ser natal até me deu boas notícias. Era um tipo de cancro com um bom prognóstico, ainda podia ficar tudo bem. 

Usei e abusei dessa ideia, para mim e para os outros. Porque precisava. Vale tudo para salvarmos as pessoas de quem gostamos, mesmo que seja só nas nossas cabeças, só por mais cinco minutos.

E depois chegou janeiro.
Janeiro trouxe outra consulta, o resultado da biópsia e uma combinação de palavras que esperamos nunca ouvir sobre um dos nossos: cuidados paliativos.

É um cancro raro, galopante, que já lhe começa a roubar a mobilidade. E, em menos de nada, uma pessoa relativamente saudável até então, está a ser mastigada por uma doença que ninguém sabe muito bem de onde veio mas instalou-se e tomou as rédeas da vida dele sem pedir permissão.

Hoje, escrevo-o aqui mas ainda não aceitei. Estou claramente na primeira fase do luto, a negação, e ainda espero por um milagre qualquer. Sou incapaz de aceitar que se fale da morte sem se tentar o que quer que seja para prolongar a vida primeiro - até à data, ainda nada foi feito. E eu, (recém) otimista, tendo a esperar pela salvação na última curva, por aquele golpe magistral da sorte que volta a virar a ampulheta e a entregar-lhe mais uns anos de vida. Porque merece. Ainda lhe faltavam uns poucos para a morte ser aceitável.

O que sinto é sobretudo ansiedade.
Oscilo entre a antecipação da perda e a fé numa força qualquer - ou num erro médico, que têm todo o direito de errar também. Calo a voz que me fala do que é visível para me agarrar ao lado mais irracional da esperança. Mas depois existe todo um outro lado, talvez mais egoísta, talvez mais medroso, que é o lado que acabou de ser relembrado de que a vida é isto mesmo. Hoje é e amanhã não é. Sabemos disto desde sempre, crescemos a ser ensinados das inevitabilidades da nossa existência, mas ignoramo-las o mais que podemos enquanto nos é possível. Até que acontece na porta ao lado.

E foi aqui que me fechei no meu casulo. 
Comecei a ter crises de ansiedade, com medo dos segredos que poderão encerrar cada um dos corpos de todos os que me são mais próximos - eu incluída. Fui invadida pelo terror de poder voltar a ouvir a mesma combinação de palavras de forma súbita e inesperada, e não poder fazer absolutamente nada em contrário. Mas a verdade é que também de nada me adianta permitir esta angústia, porque o que tiver de ser, será.

Depois, veio o pensamento óbvio sobre a forma como vagueamos pelo mundo à espera de que a vida seja outra coisa qualquer. Escrevi sobre isso na passagem de ano, ainda antes de saber que este seria o próximo capítulo: o meu principal objetivo é viver sem pressa. Estou cansada de às oito da manhã já só pensar nas cinco da tarde, às segundas só querer as sextas e passar a vida a ansiar pelas próximas férias. Até elas acabarem, e recomeçarmos do zero.

Já tinha percebido que viver assim é estar meio morto. Perde-se tempo nessa quase apneia para nem sentir demasiado o que se passa, até ser outra hora, outro dia, outro mês. E de repente é natal, passou mais um ano, o tempo passou mas os dias contaram para muito pouco. 

Apetece-me acabar com esse marasmo inquietante de quem se acha imortal, de quem pensa que tem sempre tempo para começar a viver, lá mais para a frente, que depois de velhos e reformados é que a vida é boa.

Eu quero que a minha vida seja boa hoje. Ou melhor, ontem.
Quero agarrar o tempo com a mesma intensidade com que agora o fito em cada visita - a ele, ao parente doente - como quem o quer segurar neste mundo para sempre. Porque quero, oh se quero.

6 comentários:

helena barreta disse...

Ai, Cinderela. Conheço tão bem esses sentimentos que nos deixam sem chão, a tristeza, o medo, a raiva, a dor da perda.

Tenho cravado em mim o momento em que nos disseram, em Março de 2010, que no melhor dos cenários tinha 12 a 15 meses de vida, em Agosto de 2018, um mês antes da 4ª operação, marcaram as consultas dos cuidados paliativos, novamente o pior dos cenários, até hoje não se confirmou nada do que nos disseram, ou melhor, garantiam que ia acontecer, até hoje nunca foi preciso nada do que nos deram como garantido. Não tem sido fácil, mas está longe,felizmente, do prognóstico que nos deram há quase 12 anos atrás.

Que corra tudo pelo melhor e que o seu familiar tenha a sorte, a ciência,o milagre, o que quer que seja que tem tido o meu.

Grande abraço

disse...

Cuidado com o dr. google. Por causa dele passei numa escuridão quase total, num período que já por si era negro, a fazer contas aos 18 a 24 meses que me restavam de vida. Estávamos em 2005 e, passados quase 17 anos, ainda ando por aqui.
A vida depois da reforma, se as doenças se mantiverem dentro de níveis aceitáveis, é tão boa como em qualquer outra altura. O maior inconveniente é quando começamos a olhar à nossa volta e percebemos que as pessoas a quem chamávamos adultos quando tínhamos 18 anos, já morreram quase todas e todos os dias vemos morrer pessoas com a nossa idade, quando não mais novos.
Mas tudo tem as suas compensações. Hoje preocupo-me muito menos com o futuro e tento viver em paz o tempo que me resta. Em março faço 70 anos. Quantos mais é que me restam, pouco importa. Preocupo-me mais com o "como" do que com o "quanto". A morrer preso a uma cama e a babar-me, preferia morrer já, mesmo deixando o parágrafo incompleto. Preocupa-me a solidão (a minha ou a da minha companheira). Depois de 45 anos juntos, ficar só ou a preocupação de partir e deixar o outro só, é uma ideia que me atormenta.
No caso do teu familiar, esperemos pelo erro médico ou, como me disseram há 17 anos, tenhamos esperança, porque o diabo não há de estar sempre atrás da porta.

Emma disse...

Não sei bem o que dizer :(
É algo muito difícil de aceitar e de lidar mas espero que ele não esteja a sofrer e para ti e toda a família a maior das forças ♥

Anónimo disse...

muita força patrícia

Anónimo disse...

Olá Patrícia. Os anos passam mas o teu blog continua a ser daqueles que mais me marcaram. Como tal dou comigo aqui, na pausa se um turno noturno a vir visitar ao final de uns bons meses, este teu cantinho. 2022 passou num ápice, e é com choque que me apercebo que há mais de um ano que te encontras ausente.
Espero que a vida tenha melhorado jovem. Mereces o mundo. Um beijinho, uma amiga

alfredo ernesto disse...

Caramba... às vezes venho aqui para matar saudades dos tempos em que ainda escrevia, mas vou sendo engolida pela vida e por tudo o resto. Hoje decidi que era desta que escrevia aqui e quando entrei tinha um comentário de há poucas horas.
Obrigada, mesmo. Hoje pareceu um sinal. Beijinho gigante!