sexta-feira, 10 de agosto de 2018

as madres teresa de calcutá e a extinção aparente do bullying

Há uns dias - há mais do que me orgulho, mas o tempo não estica - encontrei um vídeo no facebook que me tocou particularmente. Mais do que pelo assunto em si, que me diz muito, foi a forma como o encontrei.

Imagino que a maior parte de vocês não o saiba, mas esta pessoa veio com um defeito de origem, curiosamente, o mesmo do miúdo: lábio leporino.

Vá, vão lá procurar imagens hediondas, eu espero aqui.
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Já está? Boa.
É uma malformação congénita. Saltando 23 anos desde a primeira cirurgia, saltando a correção necessária nos dentes que se lembraram de fazer um ângulo de 90º, em termos práticos, e no meu caso, hoje em dia é uma cicatriz que vai do lábio ao nariz e não me incomoda minimamente. Nunca incomodou. Mas também é um nariz que nunca teve a sorte de se conseguir fazer simétrico, porque lá calhou faltar-lhe a base. Coisas da vida, acontece aos melhores. É só um bocado fodido quando tens 10 anos e não percebes porque é que gozam contigo se nunca fizeste nada para estares naquela situação.

Ou aos 12.
16.
18.

Foi isso que me chateou mais: aquele vídeo foi partilhado por alguém que, em tempos, gozava comigo. Depois a pessoa lê os comentários, e é tudo amor e paz, e ai coitadinho que não tem culpa, é um menino como os outros. Certo, mas onde andaram estes bons samaritanos em todos os anos que eu sofri com isto?

É bonito, que é, verem o vídeo de alguém que está a sofrer com isto e saltar-vos a lagrimita ao olho, mas o que vinha mesmo, mesmo, a calhar era, sei lá, pensarem duas vezes antes de se rirem de alguém que está numa situação que não pode mudar. Tipo esta - só nascendo outra vez e, mesmo assim, teimosa como sou, acho que voltava a vir defeituosa só por causa das tosses.

Se hoje falo disto a brincar, há uns anos eu sentia-o como uma condenação, a garantia de que nunca poderia ter uma vida normal porque, por mais que isto não seja minimamente incapacitante, era sempre o elefante no meio da cara, motivo de risinhos mal disfarçados, ou nada disfarçados por pura maldade, motivo para me gozarem porque tinha o nariz torto, porque era feia e o seria sempre. Porque nunca ninguém iria olhar para mim, nunca teria o direito de ser amada porque - c'mon - quem é que iria querer ser visto e, pior, apresentar uma miúda anormal como sendo a namorada?

Ouvi isto muitas vezes. Acreditei em todas elas.
Houve uma fase da minha vida em que almoçava às escondidas na biblioteca, para garantir que me cruzava com o menor número possível de pessoas. Tornei-me num bichinho do mato porque me era impossível confiar em quem quer que fosse - poucos, pouquíssimos, foram os que conseguiram entrar na minha vida, e não era por eu não querer. Não conseguia.

Sentia uma necessidade absurda de ter atenção, especialmente do sexo masculino. Entendo agora o quão deprimente era o facto de qualquer olhar na minha direção já fazer acelerar este coraçãozito despedaçado - queria, por força, que alguém me visse do outro lado, que me provassem que estavam todos enganados, que eu estava enganada, que havia algo de especial em mim, uma diferença boa. Mais do que uma malformação que me calhou na rifa. Mais do que tudo. Em parte, chego a sentir-me ridícula só por me lembrar.

Também demorei anos a conseguir sair à rua maquilhada, por mais que fosse só aquele risco preto na linha de água, que se usava naquela altura em que as miúdas de 12 anos ainda eram inocentes, saíam à rua de cu tapado e não se maquilhavam como se fossem a um casamento todos os dias. Eu era incapaz de ser vista com alguma coisa que me aproximasse daquela que seria a normalidade de uma miúda da minha idade, porque tinha medo de que pudessem pensar que eu me achava minimamente bonita. Foram muitos anos a querer deixar claro que eu me sentia tão anormal, tão feia, tão inútil, quanto davam a entender que eu era. E foram muitos anos a acreditar nisto também - embora, confesso, nunca me tenha passado na totalidade.

Este não é um post triste, porque eu já não sou esta miúda infeliz que se sentia presa a um corpo que odiava - cresci, entretanto. A minha vida mudou, a maioria das pessoas à minha volta já não tem uma idade mental de cinco anos, e os comentários maldosos já são cada vez menos - mas, posso garantir-vos, sofri p'ra caralho durante anos a fio. E sim, deixa marcas profundas, difíceis de apagar. 

Considerem-no um... abre olhos. Acredito que é preciso falar-se sobre as coisas, mostrar-se o backstage daquela miúda que faz de conta de que nada a afeta enquanto sente que não está a fazer nada viva, porque eu fui essa pessoa e eu tenho quase a certeza de que todos nós conhecemos, pelo menos, uma. Talvez, se tivessem visto o vídeo há uns anos atrás me tivessem torturado menos. Ou talvez tivessem tido a mesma reação ao vídeo, mas continuassem sem entender que esta gorda anormal também é de carne e osso, e estava a passar pelo mesmo que aquele outro miúdo que levou o povinho às lágrimas.

Querem rir-se? Riam-se das escolhas. Não se riam das coisas que não estão ao nosso alcance mudar.

4 comentários:

Anónimo disse...

Oh pah!!!! ❤️

Tenho tanto orgulho em ti e naquilo que te tornaste. Estás tão mais forte.
Os meus sentidos parabéns!!
Pessoas parvas vai havê-las sempre, mas fazes bem em tentar abrir-lhes os olhos!

ernesto disse...

Já vens dos meus tempos de bichinho do mato! :) Obrigada, mesmo!

Emma disse...

O que não nos mata, torna-nos mais fortes! E espero que assim continues sempre a fortalecer, nunca a ir a baixo por muito que custe.

disse...

És "grande"! :)