Comecemos pelo início: eu adoro comer. Dêem-me arroz com feijão preto e vão conhecer o rosto do prazer. Relembrem-me de que o meu aniversário foi, praticamente, há um mês e ainda não fiz mousse de oreo este ano, e saberão o que é fazer alguém feliz. Estendam-me um pacote de filipinos brancos e vejam-no a ser devorado em três nanossegundos. Só fica o plástico.
Eu adoro comer mas tenho uma relação cada vez mais difícil com a comida, e a culpa é desta era estranha em que, de repente, somos todos nutricionistas e estamos todos aptos para dizer aos outros o que podem ou não comer. Há uns anos o drama era não se ter comida... hoje é mais o ser quase um pecado comer. É estranho. É difícil. Não me faz sentido.
Há mais de dois anos que procuro uma alimentação equilibrada - e, quando digo equilibrada, é equilibrada mesmo, com direito a tudo sem culpas nem retrocessos, sem a obsessão pelo estritamente saudável nem o descontrolo absoluto. Só isso: equilíbrio, sem aspirar tornar-me numa deusa fit, sem propensão a voltar à obesidade. Mas tem sido difícil, especialmente controlar a culpa.
O problema começa no preço das coisas. Fica difícil comer bem quando uma pessoa quase tem de pedir um empréstimo se quiser comer frutos secos diariamente, e encontra pacotes de bolachas, com doses cavalares de açúcar, ao preço da chuva. É de propósito, diria eu. Quase que uma adaptação da seleção natural: se fores rico, sobrevives, se fores pobre, morres num poço de banha. Tudo para que não chegues à idade da reforma.
Depois, entram as dietas. As milagrosas, as restritivas, as come-que-nem-um-porco-e-emagrece, as come-uma-maçã-por-dia-e-conta-os-ossinhos-do-teu-corpo-um-a-um. Entram as influencers a aconselhar suminhos detox que, além de terem doses absurdas de açúcar, não existe qualquer evidência científica de que tragam, de facto, algo de positivo ao organismo. Entram as comidas abençoadas da prozis, que tudo quanto é influencer tem um código promocional. Barritas energéticas com sabor a oreo? Aposto que são saudáveis. Nada processadas. Na-da. Depois dizem evita os enchidos, come fiambre magro, é saudável!, e saltam vinte e sete paleos para o caminho a dizer fiambre não é paleo! enche o bandulho de presunto e chouriço!.
Agora, o típico come várias vezes ao dia, sempre pouquinho de cada vez já não faz sentido. Não. Agora é atestar o bucho e só voltar a comer quando se chegar à reserva. Não tenho nada contra, atenção: adicionaram-me a um grupo de paleo e, apesar de não ter achado grande piada ao facto de parecerem um rebanho, até achei bastante interessante o conceito, nada difícil de seguir. Mas sem extremismos, pelo amor de deus.
Comer hidratos parece pecado. Ingerir alimentos com glúten vai, muito provavelmente, ser o princípio do holocausto. Quem bebe leite de vaca deveria ser exorcizado na hora - até porque é do conhecimento geral que, para evitar alimentos processados, devemos começar sempre por passar a beber leites vegetais. Não há nada mais natural do que leite de arroz, por exemplo.
Do outro lado do mundo, ficam os outros. Os que se cansaram de tentar virar fit, e então contentam-se em dizer ao mundo que não há nada de errado em ser-se obeso, desde que aceitem o corpo que têm. E o que mais me preocupa é ver isto acontecer, lá está, nos ditos influencers, em pessoas que são ouvidas por milhares de outras pessoas que, muitas vezes, não sabem filtrar o que se lhes é dito. E chateia, que chateia.
Se és obeso, tens um problema.
Se és demasiado magro, também tens um problema.
Se vives obcecado com a comida, com o que podes ou não comer sem ir para o inferno, tens um problema mais grave ainda.
Se, pior do que tudo isto, achas que tens uma palavra a dizer sobre a alimentação dos outros, a não ser que sejas nutricionista e queiras realmente ajudar, cala-te. Por favor, cala-te.
É difícil perceber o que é certo e errado, é difícil saber o que se pode ou não comer - mas, acima de tudo, começa a ser bem difícil equilibrar os pratos da balança e não nos tornarmos reféns de tudo o que se diz por aí que deve ou não estar nos nossos pratos.
E eu que só queria comer com gosto, e sem pesos na consciência.
1 comentário:
Como eu te compreendo!
O que mais me chateia é mesmo isso de todos terem uma opinião a dar sobre o que comes.
Antes ninguém me dizia nada, agora que sou vegetariano virou tudo nutricionista "ai olha que não tens nutrientes, olha que falta a vitamina XYZ, ah mas és mais saudável? ah, estás de dieta?"
Porque não compreendem que não como carne nem peixe, porque, simplesmente, não quero?
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