sexta-feira, 5 de abril de 2019

os eternos estagiários

No início desta semana, tive uma entrevista de emprego para uma vaga deeee... operadora de call center.

Entenda-se que ofertas para call center é, literalmente, o que mais há em Coimbra, o que já me parece um claro indicador das condições de trabalho: diariamente - sem exagero: DIARIAMENTE - são colocados anúncios exatamente para a mesma função, mas com textos diferentes e com títulos mais ou menos originais, a ver se ainda alguém cai. Não me vou alongar sobre algo que só sei por relatos alheios, mas nunca me candidatei por ter consciência de que é trabalho precário ao mais alto nível.

Até que apareceu um novo anúncio, também para call center mas numa zona completamente diferente, e a pessoa lá envia o cv, como quem atira o barro à parede, e logo se vê no que dá.

Portanto, como comecei por dizer, tive uma entrevista.
Tenho a noção de que disse as coisas certas e de que os conquistei em poucos minutos. Isso ou o desespero deles é maior do que o meu e os restantes candidatos eram ainda mais merdosos do que eu - eu nunca saberei, vocês nunca saberão, mas em todo o caso... vamos dizer que tenho aquela lábia para convencer as pessoas de que sou capaz de vender as alminhas deles em troca de um bolicao.

A dada altura, o senhor diz: 

- sabe que num emprego na área comercial... há uma coisa que está sempre presente...

*fica a olhar para mim, à espera de que eu complete a frase como se fôssemos um casalinho*

- comissões! - respondo com os dois neurónios que ainda respiram.

Sorri ligeiramente. Entendo que fiz merda.

- também, mas eu estava a falar da pressão.

Apesar deste deslize, a coisa foi indo bem. Eu estava pouco convencida, devido a uma série de fatores que não vos interessam, mas disposta a tentar porque, assim como assim, era melhor do que nada. Até que eles dizem...

- não sei se reparou mas isto é para um estágio profissional! são 9 meses, o salário é quase o salário mínimo, essas coisas...

Não, não reparei porque não estava no anúncio - se estivesse, com toda a certeza de que este fat ass não se teria sentado naquela cadeirinha, e a pergunta que não quer calar é... para quando colocar limites nos estágios profissionais? 

Assim de repente, eu consigo entender os estágios profissionais em situações específicas, quando pessoas recém formadas em alguma coisa pretendem enriquecer o currículo, por forma a facilitar a entrada no mercado de trabalho (gostaram da inocência aqui? the truth is: em primeiro, 9 meses de experiência são uma gota no oceano quando as empresas pedem 5 anos, e em segundo, provavelmente só vão perder oportunidades em outras empresas que também queriam um trabalhador a custo zero, mas entretanto vocês já gastaram o vosso plafond de um estágio por vida.), mas não consigo entender que toda e qualquer profissão possa ter os ditos estagiários.

Por que caralho vai andar o povo a pagar a um estagiário de... operador de call center? O trabalho em si já não é precário e merdoso que chegue? É mesmo necessário trabalhar sem quaisquer direitos e acabar desempregado nove meses depois, para que a empresa possa repetir o processo e nunca chegar a pagar a alguém?

Isto se, entretanto, não tiver sido colocado na rua por não ter cumprido os objetivos de vendas. Aqui trabalhamos com estabilidade e sanidade mental, já se viu.

Também já vi anúncios a pedir candidatos, elegíveis para estágios profissionais, para estafetas. Empregados de balcão. Operários fabris. Pergunto-me para quando os varredores de rua estagiários.

Depois a parte mais triste é que estes estagiários nem sequer podem usar o estatuto para se negarem a alguma coisa, tipo faz tu isso que eu sou só estagiário - não, filhos, estas pessoas trabalham o dobro, a ganhar pouco e sem férias, na esperança vã de, ao fim de 9 meses, a empresa achar que era um bom negócio ficar com eles. E, na maior parte das vezes, não fica - vai buscar outro e repete-se o processo.

Até quando? 
Vale mesmo tudo para fazer de conta de que a taxa de desemprego diminuiu? Vale mesmo a pena não ter qualquer respeito pelas pessoas que vêem a estabilidade como um desejo inalcansável?

Acho que não.

6 comentários:

marianósky disse...

a cultura de exploração do estagiário é grave nas profissões que exigem licenciatura ou mestrado, mas parece-me sinceramente muito pior nas outras. a mim irrita-me particularmente que a minha ordem profissional promova e, de certa forma, quase nos obrigue a isto por nos exigir (em cima do estágio curricular, onde éramos explorados e pagávamos propinas) a ir fazer um estágio profissional de 12 meses onde só em casos excepcionais são cobertos pela bolsa mais de 9. já para não falar dos casos de crimes fiscais que envolvem devolver tsu e outras merdas afins. eu tive sorte porque estou a trabalhar com pessoas que levam as merdas a sério, que se conhecem e que pensam como eu, mas reconheço também que sou das poucas. em profissões tipo recepcionista, varredor, operador de call center ainda me faz menos sentido. que estágio é esse? até porque há períodos de "formação" p.e. para call centers que as pessoas são obrigadas a frequentar (e muitas vezes a ganhar nada nesses períodos), então estágio de quê?

A TItica disse...

O estado é que têm sempre as pernas abertas!!!

ernesto disse...

marianósky, não fazia ideia de que alguém era "obrigado" a fazê-lo! Se bem que... em boa verdade, grande parte das ofertas que se encontram são para isto mesmo, e muitos acabam por o fazer por ser a única hipótese de trabalharem na área para que estudaram... e acredito que, para alguns, nem seja mau porque ainda há empresas que, de facto, ficam com o estagiário, se ele tiver desenvolvido um bom trabalho, e que até pagam mais em cima da bolsa, por forma a atingir um salário mais justo (pelo menos, nos níveis inferiores... há quem cubra o restante até atingir o valor do salário mínimo, outros não querem saber).
Ainda assim, como disse, eu até consigo entender um estágio numa área muito específica, não assim. É ridículo mesmo! Quanto às formações, do que sei, eles vão mandando embora as pessoas que não parecem ter jeito para o trabalho (para vender a banha da cobra, claro), e essas nunca chegam a receber nada, independentemente de terem tido dois dias de formação ou um mês :|

A Tltica, o problema é que o desespero é tal e a oferta tão pouca que há sempre quem se sujeite a este tipo de condições. Não julgo, mesmo, porque sei o que é ver o tempo a passar e sentir que não há alternativa... mas o problema é que, enquanto houver quem aceite, isto nunca vai parar.

disse...

Eu pensava que um estágio era feito em determinadas profissões, com o fim de dar ao estagiário alguma experiência antes de ser integrado. Estágios para trabalhar como vendedora de banha da cobra num call center, é novidade para mim. Então, estagiários com experiência, é uma vigarice maior do que vender bilhetes de lotaria premiados.
Onde é que isto vai parar?

ernesto disse...

Supostamente, isso era o que fazia sentido. Nem sequer tinha a noção de que TODAS as profissões agora se poderiam candidatar a um estágio destes. É absolutamente ridículo.

Coisas da Andreia disse...

Há uns anos também estava desempregada e lembro-me que me candidatei a uma vaga para call center apenas para ver como seria a entrevista ... e fiquei parva com tudo o que ouvi, bem como a lábia que eles tinham para enganar clientes ... apesar de ter passado a próxima fase nunca mais lá pus os pés.