Chamo-lhe maria dos olhos lindos, porque os tem: nunca toca na campainha porque não quer incomodar e tem um timbre tão doce que derrete qualquer coração. Dói-me vê-la falar baixinho, cada vez mais baixinho, à medida que a doença a enfraquece e lhe vai roubando a vida tão devagar, e tão depressa ao mesmo tempo.
Quando chegou ao hospital, ainda andava pelo próprio pé. Não precisava de ninguém e pregou-me um susto dos diabos, durante a noite, quando entrou de repente no quarto onde eu estava, às escuras, durante as horas mortas em que me é permitido descansar nos intervalos das campainhas. Achei-lhe piada, apesar de tudo, e não me consegui zangar sequer quando percebi que era ela quem andava a confundir a pia dos despejos com uma sanita e insistia em ir fazer xixi lá.
Nas primeiras vezes em que quis ajuda para se levantar e andar, achei que era fita - coisa frequente no hospital. Depois percebi que não era: cada vez mais debilitada, tem vindo a perder capacidades de dia para dia. Hoje, já mal fala: ver as lágrimas nos olhos das netas transporta-me para um sítio onde eu não estive, há quase um ano atrás. E dói. Dói para caralho.
Trato-a como espero que tenham tratado a minha tia, até ao final. Guardo para ela a minha voz mais doce e toda a paciência do mundo. Faço-lhe festinhas no braço, dou-lhe a mão, sorrio-lhe: e, quando chega a hora de comer, consigo dar-lhe a sopa toda. Vamos comer, maria dos olhos lindos? E ela não responde - mas sorri.
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