Mostrar mensagens com a etiqueta os smurfs do hospital. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta os smurfs do hospital. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 26 de maio de 2017

deixem-me que vos diga

Uma das perguntas que me fazem mais vezes, quando me veem a trabalhar no hospital, é se não quis estudar mais. Conto-lhes que quis ir trabalhar antes, que quero poder financiar o meu futuro - e esta, apesar de ser a verdade, nunca deixou de ser o meu calcanhar de aquiles.

Fui procurar emprego com um sonho empoeirado guardado numa caixa trancada a sete chaves, com ânsias de me realizar profissionalmente e de me esquecer de que sou pessoa fora do trabalho - percebo-o agora. Cresci a querer ocupar-me, a tentar não desejar uma vida normal, um amor, uma família. Mascarei a solidão de felicidade e aprendi a querê-la acima de qualquer outra coisa. E, um dia, a minha vida mudou - exatamente no meu primeiro dia de trabalho.

Talvez isto não faça sentido - ainda não escolhi o que quero mas, com algum traquejo e uns meses de caos, percebi exatamente o que não quero - aos 21 anos sinto-me incapaz, pela primeira vez, de responder à pergunta o que queres ser quando fores grande? Aos 21 anos, vi as minhas ideologias desmoronarem-se como um castelo de cartas e dei por mim a sonhar com uma vida diferente daquela que imaginei desde que me lembro de mim.

Sinto-me perdida, na maior parte do tempo; há uns dias, dei por mim cansada, desmotivada, a correr em direção ao mar. Só parei quando senti a água a enregelar-me as pontas dos dedos e a entorpecer-me os sentidos; os meus pés eram os únicos desenhados na areia molhada e o meu rasto desesperado em direção ao único sítio que me acalma, fez-me lembrar de que, onde quer que eu vá, hei de ter sempre para onde voltar.

As ondas não me trouxeram respostas, mas foram o analgésico perfeito para as dores da alma - estou grata pelo que tenho agora. Um dia destes descubro o caminho que quero explorar a seguir - e enquanto houver mar, há de correr tudo bem.

insólitos

Quando uma pessoa acha que já viu de tudo, eis que a esposa de um dos doentes aparece com um garrafão de água vazio e me explica que ele gostava de fazer xixi no garrafão, tal como faz em casa.

(mas depois a senhora é doce, tão doce, que parte o coração ter de explicar que aquilo é um hospital e não podemos ter garrafões com urina no meio de uma enfermaria)

terça-feira, 9 de maio de 2017

era um peso morto.

Não sou insensível, não acho piada à desgraça alheia, não encaro a morte como algo leviano - mas este humor negro que deus nosso senhor me deu é, provavelmente, o melhor antídoto para a loucura quando se trabalha num hospital e se lida com situações que nos fazem colocar toda a nossa vida em perspetiva - porque acontece, muitas vezes. 

Ninguém vos conta, mas às vezes dói muito ver alguém chegar a um estado que não desejamos a ninguém - dói ainda mais imaginar os nossos a chegar a esse mesmo estado. Às vezes dói ver sonhos a ir por água abaixo, vidas a esgotarem-se, sorrisos a falhar. E dói mesmo, caramba. Não é de ânimo leve que se fazem cuidados post-mortem a alguém cuja esposa esteve, ainda há umas horas, a chorar à nossa frente, pelo medo misturado com a certeza de que o ia perder. A maior parte de vocês nunca vai saber o que é tocar num corpo sem vida sabendo que é o pai de alguém, o filho de alguém, o marido de alguém. O amor da vida de alguém - e desejar, desejar mesmo, nunca ter de ver um dos vossos assim, sabendo que é inevitável.

Por isso, aguentem o meu humor negro. Aguentem as piadas esquisitas, aguentem esse meu lado que parece quase diabólico aos olhos de quem não é capaz de entender que essa é a minha forma de não ver além do que vejo, de não sentir além do que sinto e, sobretudo, de não enlouquecer.

weird cinderella

Ele esteve lá durante alguns dias - sabia que tinha sido uma amputação, mas não sabia ao certo o quê porque, durante esse tempo, esse quarto nunca ficou por minha conta e nunca cheguei a fazer mais do que dar-lhe de comer.

Quando ele teve alta e a cruz vermelha chegou para o ir buscar, era eu quem lá estava. Fui eu que ajudei a passá-lo para a maca: destapei-o. Passámo-lo mas, para meu horror, estavam a tentar puxar a maca para longe da cama e o senhor tinha a perna presa num lençól. Começo a dizer, meio aflita:

- esperem, esperem! falta uma perna!

E depois olhei melhor para o senhor: faltava-lhe mesmo uma perna porque tinha sido amputada.
Ninguém percebe a piada, mas eu ainda me rio quando me lembro disto.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

sobre ser auxiliar

À semelhança de qualquer outro amor, o gosto pela minha profissão não se desenrola em linha reta: se há dias em que gosto do que faço, há outros em que me apetece atirar a farda para o chão - claro que isto seria visualmente mais bonito se eu usasse uma bata e não me estivessem a imaginar a desfilar nua pelos corredores do hospital, mas é o que temos. 

A ingratidão é desgastante. A falta de reconhecimento, o quase-desprezo. A ignorância.
Lembro-me de um dia me terem perguntado desde quando é que era preciso tirar um curso para ser empregada de fazer camas, e eu ri-me: no dia em que ser auxiliar numa enfermaria for fazer camas, certamente vou deixar de sair do hospital com as pernas tão inchadas que as calças quase não me servem.

Toda a gente sabe que os auxiliares são os rafeiros do hospital - o que poucos reparam é que, na verdade, também são eles que estão sempre na linha da frente, quem mais cuida e conhece os doentes, os primeiros a aparecer quando eles precisam de alguma coisa. Ninguém imagina os quilómetros que fazemos naqueles corredores, só para garantir que todos estão confortáveis, que nada falta - e, mesmo assim, existirão sempre razões de queixa, por mais que se corra, por mais que se tente agradar a todos. Todos os doentes acham que são os únicos, e todos querem ser os primeiros. E nós, bichos estranhos de duas pernas e dois braços, desdobramo-nos como podemos mas nunca é suficiente. Estou sozinha, digo muitas vezes. Não consigo estar em todo o lado ao mesmo tempo - mas devia, aparentemente.

O que ninguém vê é que muitas vezes estamos atentos às histórias do senhor manuel enquanto fazem as cinco camas daquele quarto, até terem de lhe dizer que precisam de ir para outro, e depois ouvem a dona luísa a falar dos doze netos enquanto lhe dão banho. Porque importa, porque lhes faz falta, porque eles gostam de sentir que têm alguém que quer realmente saber deles. E eu quero porque sou uma colecionadora compulsiva de histórias e de sorrisos.

O que ninguém sabe é que às vezes voltamos para casa a pensar em quem fica no hospital. Que, nas poucas horas que passamos fora, nos lembramos deles, nos preocupamos com eles. Nos perguntamos se estarão bem ou não - porque, na maior parte do turno, fomos nós quem esteve por perto. Quem segurou na mão de uma maria dos olhos lindos que pediu que não me fosse embora porque ela ia morrer - e não morreu, ainda. Mas olhar para ela dói-me e volta e meia deixa-me de lágrimas nos olhos: ninguém merece sofrer tanto. Ninguém - e como ela há tantas, tantas, todos os dias. Mas ninguém sabe que também nos custa.

O que ninguém repara é que, na maior parte dos dias, quase não comemos porque o tempo não estica e nós não nos multiplicamos. O pouco tempo que temos para comer é, muitas vezes, interrompido por uma campainha ou pelo telefone - e nem sempre é fácil, confesso, ouvir algumas coisas quando nos sacrificamos tanto em prol do bem estar deles. Também somos humanos, embora não pareça. Também temos necessidades básicas, mas adiamo-las, sistematicamente, porque não há tempo para nos lembrar-mos que somos pessoas antes de sermos cuidadores: falhamos refeições, falhamos as noites, falhamos aos nossos. Não sabem o que é passar dias e dias sem se conseguirem cruzar com as pessoas com quem vivem, nem o que é implorar por meia dúzia de horas de sono. Não sabem, repito, porque os auxiliares são só isso mesmo: não são médicos nem enfermeiros. Não têm estudos, não sabem nada.

E há dias em que isto cansa mesmo - cansa abdicar da família para tratar dos familiares dos outros, que nos tratam com desdém. Cansa trabalhar dias e dias a fio, sem folgas, e passar mais noites fora de casa do que em casa. Cansa, cansa mesmo, sentir que nada disto vale a pena - mas, enquanto sair de consciência tranquila e certa de que fiz o que podia, valerá sempre a pena. Mesmo que ninguém repare, mesmo que ninguém faça ideia.

Os auxiliares não são madres teresas de calcutá modernos, mas acredito que sejam, muitas vezes, os anjos da guarda da enfermaria - pelo menos é isso que tento ser. Apesar do trabalho, apesar da correria, apesar de quase não ter tempo para dar a atenção que gosto de dar a cada um, tento fazê-lo. Tento, sobretudo, aprender com as pessoas, porque isso é o que faço mais, todos os dias. E deleito-me com cada uma dessas aprendizagens, porque ser auxiliar também é ouvi-los, também é mostrar-lhes que são ouvidos. É ser o amigo que cuida deles enquanto estão doentes - é tão, mas tão mais do que fazer camas. Mas isso ninguém vê - e cansa.

domingo, 23 de abril de 2017

as marias que ninguém conhece

Chamo-lhe maria dos olhos lindos, porque os tem: nunca toca na campainha porque não quer incomodar e tem um timbre tão doce que derrete qualquer coração. Dói-me vê-la falar baixinho, cada vez mais baixinho, à medida que a doença a enfraquece e lhe vai roubando a vida tão devagar, e tão depressa ao mesmo tempo.

Quando chegou ao hospital, ainda andava pelo próprio pé. Não precisava de ninguém e pregou-me um susto dos diabos, durante a noite, quando entrou de repente no quarto onde eu estava, às escuras, durante as horas mortas em que me é permitido descansar nos intervalos das campainhas. Achei-lhe piada, apesar de tudo, e não me consegui zangar sequer quando percebi que era ela quem andava a confundir a pia dos despejos com uma sanita e insistia em ir fazer xixi lá.

Nas primeiras vezes em que quis ajuda para se levantar e andar, achei que era fita - coisa frequente no hospital. Depois percebi que não era: cada vez mais debilitada, tem vindo a perder capacidades de dia para dia. Hoje, já mal fala: ver as lágrimas nos olhos das netas transporta-me para um sítio onde eu não estive, há quase um ano atrás. E dói. Dói para caralho.

Trato-a como espero que tenham tratado a minha tia, até ao final. Guardo para ela a minha voz mais doce e toda a paciência do mundo. Faço-lhe festinhas no braço, dou-lhe a mão, sorrio-lhe: e, quando chega a hora de comer, consigo dar-lhe a sopa toda. Vamos comer, maria dos olhos lindos? E ela não responde - mas sorri.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

cinderela aconselha

Se há coisa que eu não percebo é o que passará pela cabeça das pessoas que, tendo familiares hospitalizados, se dão ao trabalho de os ir visitar para os deixar ainda pior. A minha sugestão é esta: se não vão para os animar, fiquem em casa.

Este aconteceu no domingo, mas tenho mais uns quantos para exemplo: estava no quarto deste doente quando a tia dele chegou. Aproximou-se da cama, viu a mão ligada, após a amputação do dedo médio, e exclama:

- ai coitadinho... - logo aqui já dava vontade de lhe atirar com a cadeira às costas-  o dedo já foi! se não tens cuidado, a seguir vai o braço.

(tive de me meter)

- ó senhora, isso é lá coisa que se diga?
- então, é a verdade! a seguir fica sem o braço.

Em casa
Esta mulher devia ter ficado em casa. Ou isso ou ser muda - às vezes é melhor do que dizer estes disparates.

domingo, 16 de abril de 2017

hoje

Hoje foi dia de páscoa: acordei, às seis e meia, aborrecida com umas quantas questões injustas e a sofrer por antecipacão com os 12 turnos, quase seguidos, que tenho pela frente. Nunca dei importância à páscoa até este ano: falhei almoços de família com o mesmo pesar que tenho falhado redondamente nas horas de sono.

Quando cheguei ao hospital, esqueci-me da data. O barulho de fundo era o habitual, os cheiros do costume, as pessoas que repetem a estadia pelos azares da vida, e outras que lá caíram por acaso - não há dias nem horas. Há correria a toda a hora.

Depois, vi-o: já o conhecia. Conheci-o há umas semanas, noutro internamento - é cliente habitual no serviço. Rapaz simples, condenado pelos genes e tramado por uma doença, trato-o por tu para facilitar, embora - descobri-o hoje - tenha idade para ser meu pai. Conversámos. Meti-lhe o doce de amora no pão e o açúcar no café com leite - agitei a colher na caneca e coloquei-lhe o tabuleiro à frente. Dói-me sempre um bocadinho ter de fazer as coisas mais simples por alguém que nunca as conseguirá fazer pelas suas próprias mãos, os dedos curvados, desprovidos de sensibilidade. Um coração inocente que vai sendo amputado, dedinho a dedinho, com a leviandade de quem vai só tirar sangue. E dói.

Confesso que já me irritei com ele, por uma ou duas vezes: mas porque é que só pedes para trocar a fralda quando já tens a cama ensopada? É fácil: porque ele não sente absolutamente nada antes de se sentir encharcado. Fiquei zangada comigo mesma quando percebi isso, e hoje agradeci-lhe quando me pediu que lhe trocasse a fralda a tempo.

Ouvi-o comentar que não sabia se o pai o iria visitar hoje. Mas ele vem todos os dias? Respondeu-me que não, e os olhos dele não se despregavam do corredor. Recebeu visitas: perguntou pelo pai. Ouviu vozes na enfermaria e disse que parecia a voz dele - doeu-me ver aquela centelha de esperança no olhar dele, que desapareceu quando a tia lhe disse que ele não viria. Foi para os copos com a chifruda, como é hábito.

Ele, aquele menino grande, esperava-o numa cama de hospital - e eu percebi que às vezes também é isto, que deixei a minha família em casa para ir ser a família de quem se sente abandonado. Hoje foi domingo de páscoa e, apesar de tudo, valeu muito a pena ter tido de trabalhar.

segunda-feira, 27 de março de 2017

(nem foram assim taaantas horas)

Isto de andar com os sonos trocados e de passar a vida a correr para aqui e para ali tem muito que se lhe diga: esta noite dormi tantas horas que temi sinceramente que fosse a minha cama a ficar com úlceras de pressão. Não se aguenta.

há uns dias

Uma senhora toda enxuta, após uma cirurgia ao joelho, perguntou-me se eu sabia o que lhe tinham feito porque o médico lhe havia dito que não estava a planear meter-lhe uma próstata* para já, mas provavelmente teria de a colocar - no fundo, a senhora só queria saber se já tinha a próstata no sítio. Espero que não, minha senhora, espero que não.

*prótese, entenda-se

sábado, 18 de março de 2017

é a vida, dizem

Oitenta e um anos sulcados na pele não foram capazes de lhe roubar a beleza de um par de olhos azuis doces, tão doces, que me fez gostar dele desde a primeira vez que o vi. Disse-me que a maria dele tem oitenta e cinco anos e parecia uma jovem, e eu habituei-me a vê-la, dia após dia, sentada na cama dele com o ar assustado de quem está a perder um dos seus.

Sempre que entrava no quarto, metia-me com ele; às vezes tinha de gritar porque a idade não lhe poupou a audição, e ele ria-se. Piscava-me o olho; sorria-lhe. Ralhava-lhe muitas vezes porque teimava em andar descalço pelos corredores do hospital, mas respondia-me que era assim que estava habituado e eu não era capaz de me zangar. Perguntou-me se podia comer bolacha maria porque estava cansado de beber só chá - e comeu. Nunca se queixava.

Era doce. Talvez uns dos doentes mais doces que algum dia tive: na última vez que o vi, entrou no jogo preferido dos doentes - arrancou o catéter e disse à enfermeira que tinha sido eu. Ri-me. Piscou-me o olho quando ninguém estava a ver - não consegui não achar adorável. Gostava daquele senhor que teimava em não usar o urinol porque preferia andar até à casa de banho e fazia questão de manter a autonomia no lugar - só queria que o ajudassem a lavar as costas.
Morreu ontem de manhã - recebi a notícia como um murro no estômago. O primeiro murro no estômago desde que entrei neste mundo. A primeira morte que me causou impacto, o suficiente para que escrevesse sobre ele, para que haja um registo, para que o mundo saiba que ele existiu. Chamava-se manuel... e morreu sem saber o quanto me marcou.

what a crazy friday night, yay

Há muitos tipos de doentes, mas o que mais me dá cabo da paciência é aquele que tenta ser tão prestável que acaba por ser ainda pior do que os outros todos juntos. Aquele tipo que toca na campainha 29829 vezes durante a noite por nenhuma razão aparentemente urgente, pede desculpa de cada vez que o faz e, já de manhã, diz:

- ai, a menina está com um ar tão cansado! não conseguiu descansar mesmo nada, pois não?


Como se a senhora não tivesse feito questão de garantir que eu não teria tempo sequer para pensar em tal coisa.

terça-feira, 7 de março de 2017

de ser tas, ao, aam ou o que mais lhe queiram chamar

Nascer com uma malformação congénita também é aprender a chamar casa ao hospital onde te espicaçam as veias e te ensinam quais os cheiros e as cores do bloco operatório. Às vezes ainda sinto o cheiro do creme anestesiante que me aplicavam em ambas as costas da mão, minutos antes de mais uma ida à terra dos sonhos patrocinada pelo propofol.

Essa foi a minha realidade: médicos e mais médicos. Consultas atrás de consultas, sessões de porquê a mim? intercaladas com momentos de podia ser bem pior!. E eu podia ser uma traumatizada, podia ter medo de batas brancas, podia ter pavor de agulhas, podia desmaiar ao ver sangue - mas não sou. Nunca fui.

Lembro-me de ser pequenina e dizer à minha mãe que um dia ainda haveria de trabalhar num hospital, mesmo que fosse a fazer limpezas - a profissão era-me indiferente desde que eu pertencesse àquele mundo espetacular onde as coisas aconteciam. Com o tempo, percebi que o meu sonho tinha um nome e envergava uma farda branca: quero ser enfermeira, que quero. Mas depois vi esse sonho adiado, vi-o transformar-se numa bata azul, vi-o desfazer-se diante dos meus olhos na atitude resignada de quem poderia sempre estar pior - felizmente, essa crise passou.

Durante os estágios, disseram-me várias vezes que os meus esforços seriam inúteis porque nunca me poderiam garantir um emprego. Estavam certos, eu sabia-o, mas não me importava: fazia questão de dar o meu melhor independentemente de esta não ser a profissão que quero exercer até ao fim dos meus dias. E sentia-me feliz: a certeza de que estamos a ajudar alguém é e será sempre insubstituível.

Afinal enganaram-se: parece que esforçar-me tanto no estágio me abriu mesmo uma porta. Parece que dar o meu melhor também trouxe frutos: depois de dois meses à procura de trabalho, o meu telemóvel tocou e era do último sítio de onde esperei receber uma chamada. Comecei a trabalhar num dos serviços onde estagiei no dia seguinte.

Quando cheguei, vi um sorriso ao fundo do corredor. Bem vinda a casa! E eu sorri também.
É isso mesmo: casa.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

a vida e a morte em círculos

Mais do que uma vez, as pessoas olharam-me como se fosse louca quando lhes falei, com deleite, das minhas peripécias no hospital. Diziam-me que não seriam capazes, que não se imaginavam em tal sítio, cheio de desgraças e de doenças e de lágrimas. Eu via outra coisa: via recuperação, superação. Via amor impresso em olhares cheios de preocupação, em dedos enlaçados com a força de quem não quer ver alguém partir. Vi a morte, sim, algumas vezes. Vi coisas mais ou menos feias - e adorei cada uma delas porque lhes sentia a efemeridade. Sabia que, se tudo corresse bem, seria algo transitório e um dia não seria mais do que uma má recordação.

Por outro lado, sempre disse que não me imaginava a trabalhar num lar. Disse, aliás, que se não pudesse trabalhar no hospital, preferia uma caixa de supermercado a um lar. E, ainda assim, tentei; quis saber se não passaria de um capricho, se não seria ainda melhor. A minha aventura durou três dias e serviu para perceber que tinha razão desde o primeiro instante.

Os lares conseguem ser mais mórbidos do que os hospitais. A vida acontece em círculos pontuados por uma morte ou outra que, no fundo, significam apenas inquilinos novos: aquelas pessoas passam os dias ali, à espera do último dia. As rotinas repetem-se, dia após dia, sem que nada de novo aconteça; o lar transforma-se na segunda casa de cada uma das funcionárias, e os idosos passam a ser como os filhos. É preciso cuidá-los, levá-los à casa de banho, limpar a casa, garantir que estão bem. E, na maior parte do tempo, não acontece absolutamente nada: o tempo esquece-se de passar dentro daquelas paredes, certamente numa última tentativa de enganar a morte. E o azar de um será sempre a sorte de outro: uma cama nunca demora muito a ser preenchida. Há sempre alguém à espera de uma baixa.

Não há esperança de recuperação. O lar é a espera fatal: no dia seguinte, se não estiverem iguais ao anterior é porque estão piores ainda. A ideia não é deixá-los melhor para poderem ir ter com a família porque, na realidade, a família depositou-os* ali, às mãos de terceiros, para que deixem de ser um problema seu até que morram. Entristece-me, revolta-me - é uma realidade mais dolorosa do que qualquer hospital. É uma espera mais injusta, mais triste, mais solitária, mais desamparada - tenho todo o respeito por quem consegue suportar o trabalho de um lar porque, se é preciso coragem para trabalhar num hospital, é precisa muita mais coragem para aguentar assistir de camarote ao perecimento dos corpos que um dia foram tão cheios de vida e de sonhos quanto os nossos.

*quero deixar claro que não vejo os lares como um depósito e que acho que é o melhor que qualquer família, que não possa tomar conta de um idoso, tem a fazer - refiro-me a casos que conheço de perto, de pessoas que foram deixadas no lar e não recebem qualquer visita.

domingo, 15 de janeiro de 2017

de cinderela a psicopata

Em conversa com um amigo, no segundo ano de enfermagem, contou-me que foi prejudicado no estágio porque, segundo a supervisora dele, é insensível, uma vez que reagiu de forma indiferente à morte de um doente com quem, por acaso, ele só esteve dois dias e nem sequer chegou a ver morto.

E eu vi a minha vida a andar para trás e dei por mim a questionar-me se a enfermagem seria o caminho certo para mim, ou se não valeria mais ingressar numa carreira de psicopata profissional. Aparentemente, é suposto que o nosso primeiro morto mexa connosco (ou, se tudo correr bem, que não se mexa de todo). O meu primeiro morto no hospital foi o primeiro morto que vi na minha vida: entrei no quarto e encontrei-o estendido na cama, como se estivesse a dormir. A única diferença é que não respirava - a minha reação foi mandar mensagem, às escondidas, aos meus mais próximos, no auge da emoção: até àquele momento, temia a minha própria reação ao deparar-me com a morte, e fiquei realmente orgulhosa de mim mesma por sentir que não me fez confusão nenhuma.

Todos os que se seguiram, foi igualmente pacífico e, a única múmia que fiz na minha vida foi na última meia hora de estágio, a meu pedido, perante alguma incredulidade dos enfermeiros presentes. Nem percebi o espanto - era algo que fazia parte do meu plano de estágio e que, por falta de oportunidade, eu não tinha ainda feito. 

Posto isto, creio que vou passar um mau bocado quando for, finalmente, aluna de enfermagem: ou aprendo técnicas de maquilhagem perfeitas para fingir que passei a noite a chorar, ou acabo promovida à ala de psiquiatria. Como doente.

(para que conste, esta minha indiferença à morte não funciona quando é o corpo de um dos meus a estar deitado diante dos meus olhos; os nossos nunca deviam morrer.)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

depois de 3 meses de urgência

Lembro-me de ser mais nova e de dizer a toda a gente que não acreditava no amor - demorei alguns anos a descobrir que o amor não era como o pai natal, e não havia como acreditar ou desacreditar: um dia não sabes o que é e, no dia seguinte, puff, aparece de surpresa.

Vi-o nas urgências: o amor andava por todo o lado. Senti-o - e amei-o.
O amor estava impresso no olhar preocupado de quem aguardava notícias. Estava espalhado no rosto aflito de quem entregava, às mãos dos profissionais, alguém doente. Estava nas mãos dadas, enlaçadas com força, de quem torcia para que fosse só um susto. Estava nos olhos marejados de lágrimas de quem sentia que estava a perder alguém. Estava nas palavras afetuosas de familiares que buscavam mais conforto do que os próprios doentes. Estava na espera, nas horas de uma espera infinita. Estava no sorriso de quem só queria que lho retribuíssem. E eu retribuía, porque era amor.

Se falasse comigo mesma há uns anos atrás, esbofeteava-me: o amor existe e está por aí.
É só abrir os olhos e procurar a beleza nos tempos mais negros.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

devia ter previsto isto

- então e o curso, como está?
- quase a acabar! estive agora três meses no hospital.
- ai, a sério?! o que é que tinhas?

......
...
...
...
...

Uma farda azul.
Era isso que eu tinha: uma farda azul.

domingo, 13 de novembro de 2016

demasiada areia para o meu camião

Contrariamente ao que seria expectável, eu não fico feliz quando apanho alguém a olhar muito para mim, como acontece lá com o interno giro - convenhamos que um moço bonito, adorável e inteligente, nunca olharia para a miúda feia e medianamente gorda que não passa de uma mera auxiliar esquisita, demasiado burra para passar a matemática e ir para enfermagem.

Foi por isso que quando ele veio falar comigo - sobre um doente, cumé óbiu - eu senti que tinha 16 anos outra vez, fiquei atrapalhada e a tagarelar, com uma vontade enorme de me esbofetear no fim. Eu podia, pelo menos, parecer normal quando abro a boca, não podia?

e a sorte, cinderela?

Tenho para mim que, aquando do meu nascimento, o diabo fez um contrato com o azar para garantir que me enfernizariam a torto e a direito - e tem cumprido.

Vocês não sabem, mas eu até tenho sido uma boa gaja: tenho conseguido maquilhar-me e andar com o cabelo arranjadinho na maior parte dos dias. Quase todos os dias, praticamente.

No entanto, houve um dia da semana passada em que eu acordei tarde, desgrenhada e com um humor de merda. Levantei-me, vesti-me e saí, com ar de múmia, desmaquilhada e sem me pentear. (Convém explicar que tenho um cabelo difícil porque é meio ondulado, logo só tenho duas opções quando ele está seco: pentear-me ou esticá-lo. Uma vez que eu já estava atrasada e ele passa o dia apanhado, não me pareceu grave ir mesmo assim.)

E quem é que voltou às urgências exatamente nesse dia?
O interno giro e fofo - o único interno a quem eu acho piada naquele hospital e em quem eu não metia a vista em cima há semanas. SEMANAS.

Não, eu não acho que o moço ia descobrir que eu sou o grande amor da vida dele só por eu ir arranjadinha - mas eu iria sentir-me menos mal de cada vez que o apanhasse a olhar para mim.

sábado, 12 de novembro de 2016

crazy people

- menina, que dia é hoje?
- é dia 11, porquê?
- estava aqui a pensar que era dia 28. faço anos a 28.
- de novembro?
- não, de maio.
Não esperem grandes melhoras na minha sanidade mental depois de 3 meses de urgência.