terça-feira, 28 de agosto de 2018

1.5

[nunca comemorámos o somar dos meses à nossa conta. não te escrevi sequer para comemorar o nosso primeiro aniversário: em boa verdade, também não sei o porquê mas nunca o julguei necessário, nunca achei relevante, porque o que se soma, mais do que os dias, mais do que os meses, mais do que os anos, é o amor, a cumplicidade, e o desapego da palavra, cada vez menos essencial para que saibamos o que o outro quer dizer. 
há muita estrada para andar, mas às vezes olho para nós e parece que estamos juntos há uma vida inteira, que já tivemos tempo para aprendermos os cantos à casa e a melhor forma de nos encaixarmos um no outro. depois não. depois não te conheço a cem por cento, sei tudo e não sei de nada e, de repente, descobrimos uma paixão nova, uma paixão comum, e volta o fascínio daqueles primeiros tempos em que tudo era novo. caramba, como eu gosto de ti! sei que não sei tudo, e sei que tenho de ter uma paciência sábia o suficiente para aceitar que só (te) vou descobrindo com o passar dos anos, mas às vezes fico em pulgas para saber o que se segue. para saber mais, para te saber ainda melhor. para aprender tudo como se estivesse a estudar uma criatura fascinante. e não estou? 
és diferente - eu sei, é o que todos dizem, mas és mesmo. estava ainda bem lúcida quando o descobri, e são essas diferenças que me fazem gostar de ti, da pessoa que és. e até da pessoa em quem me transformaste, talvez: fizeste-me crescer. e, de uma forma geral, fizeste-me ser melhor também.
dizes que não vergo por nada deste mundo, mas eu ainda não fiz mais nada do que dar o braço a torcer desde que te conheço. ok, talvez não sempre - calma, que às vezes não se pode - mas muito mais vezes do que me parecia possível. 
gosto de ti. gosto de ti porque tens tanto de adulto responsável quanto de criança inocente, e fazes-me cair de amores por ti outra vez sempre que te ouço rir - talvez por não seres de riso fácil como eu, uma vendida às piadas banais, talvez porque és genuíno.
tu vais além de tudo o que poderia ter sonhado para mim porque, em momento algum, ousei sonhar tão alto. 
se há um ano e meio atrás me tivesses dito que hoje iríamos estar aqui, diria que era impossível. tive medo muitas vezes de que acabássemos por desistir por ser tão difícil, mas nunca teria sido capaz de te deixar ir. teria sido o maior erro da minha vida. 
sejamos sinceros: termo-nos apaixonado um pelo outro não deu jeito nenhum, não fica em conta, não é fácil, e andamos com algumas horas de sono em dívida: mas, meu amor, valeu cada segundo - e tem de ser amor, mesmo. 
definitivamente, só pode ser amor.]

terça-feira, 21 de agosto de 2018

a arte subtil de dizer não

É preciso falar-se mais da diferença entre impôr respeito e intimidar alguém - começar assim logo de pequeninos, nas criaturinhas da creche, a ver se a coisa lhes fica na cabeça e se um dia destes passamos a ter adultos capazes de conviver de forma mais... saudável, vá.

Escrevo-vos por estar zangada comigo mesma, e também é preciso assumir as falhas e torná-las num exemplo a não seguir. Estou furiosa por não ter sabido dizer não... por medo. 

Só isso: medo.
Medo de consequências que nunca poderiam (ou deveriam) existir, dado eu estar a recusar algo ao qual não sou obrigada e que me deixa extremamente desconfortável, e essa minha falha não me sai da cabeça. Se eu não quero fazer algo e, só por acaso, não faz qualquer tipo de sentido tentarem obrigar-me... porque é que o vou fazer?

Nunca fui esta pessoa. Nunca a quis ser.
Ganhei uma sensibilidade que repudio um bocadinho, e não sei se me tornei adulta ou só conas - qualquer uma destas realidades me deixa desapontada comigo mesma, e a perguntar-me por que raio atualizei para esta versão sem querer. Já terei dito vezes suficientes que me quero esbofetear?

Então, aqui estamos nós: not-so-wild cinderela, contrariada desta vida, a ter de fazer algo que não quer, porque teve medo de puxar aquele não lá do fundo. E olhem que era um não singelo, apesar de verdadeiro, sem trazer aquele "vai p'ró caralho" em anexo, por mais que a vontade fosse grande e os motivos não faltassem, mas a pessoa até é bem educada e tem umas noções de respeito pelo próximo.

Serve isto para que não me esqueça de todos os nãos que quero - e tenho de! - dizer nas próximas semanas, e para vos dar uma forcinha extra naquele não - ou no "cai p'ró caralho" - que têm entalado na goela.

Por aqui, planeio amanhã contrastar umas trombas cerradas com o meu vestido amarelo - a outra pessoa já ganhou, de qualquer forma: vai ter-me, contra a minha vontade, a fazer o que ela quer, mas pelo menos não vai levar o meu melhor sorriso, só naquela de não a deixar acreditar que não me importo.

Importo, sim.
E vou (re)aprender a dizer não a tudo quanto não me agrade.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

as madres teresa de calcutá e a extinção aparente do bullying

Há uns dias - há mais do que me orgulho, mas o tempo não estica - encontrei um vídeo no facebook que me tocou particularmente. Mais do que pelo assunto em si, que me diz muito, foi a forma como o encontrei.

Imagino que a maior parte de vocês não o saiba, mas esta pessoa veio com um defeito de origem, curiosamente, o mesmo do miúdo: lábio leporino.

Vá, vão lá procurar imagens hediondas, eu espero aqui.
...
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Já está? Boa.
É uma malformação congénita. Saltando 23 anos desde a primeira cirurgia, saltando a correção necessária nos dentes que se lembraram de fazer um ângulo de 90º, em termos práticos, e no meu caso, hoje em dia é uma cicatriz que vai do lábio ao nariz e não me incomoda minimamente. Nunca incomodou. Mas também é um nariz que nunca teve a sorte de se conseguir fazer simétrico, porque lá calhou faltar-lhe a base. Coisas da vida, acontece aos melhores. É só um bocado fodido quando tens 10 anos e não percebes porque é que gozam contigo se nunca fizeste nada para estares naquela situação.

Ou aos 12.
16.
18.

Foi isso que me chateou mais: aquele vídeo foi partilhado por alguém que, em tempos, gozava comigo. Depois a pessoa lê os comentários, e é tudo amor e paz, e ai coitadinho que não tem culpa, é um menino como os outros. Certo, mas onde andaram estes bons samaritanos em todos os anos que eu sofri com isto?

É bonito, que é, verem o vídeo de alguém que está a sofrer com isto e saltar-vos a lagrimita ao olho, mas o que vinha mesmo, mesmo, a calhar era, sei lá, pensarem duas vezes antes de se rirem de alguém que está numa situação que não pode mudar. Tipo esta - só nascendo outra vez e, mesmo assim, teimosa como sou, acho que voltava a vir defeituosa só por causa das tosses.

Se hoje falo disto a brincar, há uns anos eu sentia-o como uma condenação, a garantia de que nunca poderia ter uma vida normal porque, por mais que isto não seja minimamente incapacitante, era sempre o elefante no meio da cara, motivo de risinhos mal disfarçados, ou nada disfarçados por pura maldade, motivo para me gozarem porque tinha o nariz torto, porque era feia e o seria sempre. Porque nunca ninguém iria olhar para mim, nunca teria o direito de ser amada porque - c'mon - quem é que iria querer ser visto e, pior, apresentar uma miúda anormal como sendo a namorada?

Ouvi isto muitas vezes. Acreditei em todas elas.
Houve uma fase da minha vida em que almoçava às escondidas na biblioteca, para garantir que me cruzava com o menor número possível de pessoas. Tornei-me num bichinho do mato porque me era impossível confiar em quem quer que fosse - poucos, pouquíssimos, foram os que conseguiram entrar na minha vida, e não era por eu não querer. Não conseguia.

Sentia uma necessidade absurda de ter atenção, especialmente do sexo masculino. Entendo agora o quão deprimente era o facto de qualquer olhar na minha direção já fazer acelerar este coraçãozito despedaçado - queria, por força, que alguém me visse do outro lado, que me provassem que estavam todos enganados, que eu estava enganada, que havia algo de especial em mim, uma diferença boa. Mais do que uma malformação que me calhou na rifa. Mais do que tudo. Em parte, chego a sentir-me ridícula só por me lembrar.

Também demorei anos a conseguir sair à rua maquilhada, por mais que fosse só aquele risco preto na linha de água, que se usava naquela altura em que as miúdas de 12 anos ainda eram inocentes, saíam à rua de cu tapado e não se maquilhavam como se fossem a um casamento todos os dias. Eu era incapaz de ser vista com alguma coisa que me aproximasse daquela que seria a normalidade de uma miúda da minha idade, porque tinha medo de que pudessem pensar que eu me achava minimamente bonita. Foram muitos anos a querer deixar claro que eu me sentia tão anormal, tão feia, tão inútil, quanto davam a entender que eu era. E foram muitos anos a acreditar nisto também - embora, confesso, nunca me tenha passado na totalidade.

Este não é um post triste, porque eu já não sou esta miúda infeliz que se sentia presa a um corpo que odiava - cresci, entretanto. A minha vida mudou, a maioria das pessoas à minha volta já não tem uma idade mental de cinco anos, e os comentários maldosos já são cada vez menos - mas, posso garantir-vos, sofri p'ra caralho durante anos a fio. E sim, deixa marcas profundas, difíceis de apagar. 

Considerem-no um... abre olhos. Acredito que é preciso falar-se sobre as coisas, mostrar-se o backstage daquela miúda que faz de conta de que nada a afeta enquanto sente que não está a fazer nada viva, porque eu fui essa pessoa e eu tenho quase a certeza de que todos nós conhecemos, pelo menos, uma. Talvez, se tivessem visto o vídeo há uns anos atrás me tivessem torturado menos. Ou talvez tivessem tido a mesma reação ao vídeo, mas continuassem sem entender que esta gorda anormal também é de carne e osso, e estava a passar pelo mesmo que aquele outro miúdo que levou o povinho às lágrimas.

Querem rir-se? Riam-se das escolhas. Não se riam das coisas que não estão ao nosso alcance mudar.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

comi massa, vou para o inferno?

Comecemos pelo início: eu adoro comer. Dêem-me arroz com feijão preto e vão conhecer o rosto do prazer. Relembrem-me de que o meu aniversário foi, praticamente, há um mês e ainda não fiz mousse de oreo este ano, e saberão o que é fazer alguém feliz. Estendam-me um pacote de filipinos brancos e vejam-no a ser devorado em três nanossegundos. Só fica o plástico.
Eu adoro comer mas tenho uma relação cada vez mais difícil com a comida, e a culpa é desta era estranha em que, de repente, somos todos nutricionistas e estamos todos aptos para dizer aos outros o que podem ou não comer. Há uns anos o drama era não se ter comida... hoje é mais o ser quase um pecado comer. É estranho. É difícil. Não me faz sentido.

Há mais de dois anos que procuro uma alimentação equilibrada - e, quando digo equilibrada, é equilibrada mesmo, com direito a tudo sem culpas nem retrocessos, sem a obsessão pelo estritamente saudável nem o descontrolo absoluto. Só isso: equilíbrio, sem aspirar tornar-me numa deusa fit, sem propensão a voltar à obesidade. Mas tem sido difícil, especialmente controlar a culpa.

O problema começa no preço das coisas. Fica difícil comer bem quando uma pessoa quase tem de pedir um empréstimo se quiser comer frutos secos diariamente, e encontra pacotes de bolachas, com doses cavalares de açúcar, ao preço da chuva. É de propósito, diria eu. Quase que uma adaptação da seleção natural: se fores rico, sobrevives, se fores pobre, morres num poço de banha. Tudo para que não chegues à idade da reforma.

Depois, entram as dietas. As milagrosas, as restritivas, as come-que-nem-um-porco-e-emagrece, as come-uma-maçã-por-dia-e-conta-os-ossinhos-do-teu-corpo-um-a-um. Entram as influencers a aconselhar suminhos detox que, além de terem doses absurdas de açúcar, não existe qualquer evidência científica de que tragam, de facto, algo de positivo ao organismo. Entram as comidas abençoadas da prozis, que tudo quanto é influencer tem um código promocional. Barritas energéticas com sabor a oreo? Aposto que são saudáveis. Nada processadas. Na-da. Depois dizem evita os enchidos, come fiambre magro, é saudável!, e saltam vinte e sete paleos para o caminho a dizer fiambre não é paleo! enche o bandulho de presunto e chouriço!. 

Agora, o típico come várias vezes ao dia, sempre pouquinho de cada vez já não faz sentido. Não. Agora é atestar o bucho e só voltar a comer quando se chegar à reserva. Não tenho nada contra, atenção: adicionaram-me a um grupo de paleo e, apesar de não ter achado grande piada ao facto de parecerem um rebanho, até achei bastante interessante o conceito, nada difícil de seguir. Mas sem extremismos, pelo amor de deus.

Comer hidratos parece pecado. Ingerir alimentos com glúten vai, muito provavelmente, ser o princípio do holocausto. Quem bebe leite de vaca deveria ser exorcizado na hora - até porque é do conhecimento geral que, para evitar alimentos processados, devemos começar sempre por passar a beber leites vegetais. Não há nada mais natural do que leite de arroz, por exemplo.

Do outro lado do mundo, ficam os outros. Os que se cansaram de tentar virar fit, e então contentam-se em dizer ao mundo que não há nada de errado em ser-se obeso, desde que aceitem o corpo que têm. E o que mais me preocupa é ver isto acontecer, lá está, nos ditos influencers, em pessoas que são ouvidas por milhares de outras pessoas que, muitas vezes, não sabem filtrar o que se lhes é dito. E chateia, que chateia.

Se és obeso, tens um problema.
Se és demasiado magro, também tens um problema.
Se vives obcecado com a comida, com o que podes ou não comer sem ir para o inferno, tens um problema mais grave ainda.
Se, pior do que tudo isto, achas que tens uma palavra a dizer sobre a alimentação dos outros, a não ser que sejas nutricionista e queiras realmente ajudar, cala-te. Por favor, cala-te.

É difícil perceber o que é certo e errado, é difícil saber o que se pode ou não comer - mas, acima de tudo, começa a ser bem difícil equilibrar os pratos da balança e não nos tornarmos reféns de tudo o que se diz por aí que deve ou não estar nos nossos pratos.

E eu que só queria comer com gosto, e sem pesos na consciência.