quarta-feira, 17 de outubro de 2018

quatro dias depois.

A vida retoma, lentamente, a normalidade. Minto. Talvez seja precoce pronunciar sequer a palavra normalidade - vai demorar muito até que se chegue sequer a um lugar perto. Mas, hoje, voltei ao trabalho e consigo, finalmente, assentar as ideias e escrever sobre isto: é um início. Comecemos, então.

Não sei se as pessoas ainda se lembram disso. 
Se ainda se fala do Leslie e da forma como mastigou tudo o que se lhe apareceu pelo caminho. Se alguém contou as mortes por queda do telhado, numa tentativa de o remendar, de minimizar os danos, ou os outros tantos que foram ter às urgências pelo mesmo motivo. Se se fala das lágrimas, do rasto de destruição, e de quem varre os cacos, olhando para os destroços de uma vida inteira, achando que vai morrer sem conseguir reconstruir o que perdeu. Se calhar não porque, a dada altura, martelar sempre no mesmo assunto é chato, cansa as pessoas, tal como, há um ano atrás, já ninguém podia ouvir falar mais do drama dos incêndios. É sempre (mais) fácil quando não nos bate à porta - mea culpa. Culpa de todos.

Os estragos são incontáveis.
Há casas parcialmente a céu aberto - das que estão só destelhadas, é ridículo falar. Nem vale a pena tentar contabilizar; e outras tantas a quem a fúria do vento rebentou portas, janelas, paredes: sim, paredes. Digo e repito a frase que anda de boca em boca: nunca tive tanto medo em toda a minha vida. Nunca. Em menos de nada, senti que vivia numa casa com paredes de papel, num castelo de cartas prestes a ruir. Tudo, absolutamente tudo, parecia demasiado frágil para fazer frente à besta que estava na rua. Depois, acalmou, saímos à rua e o pânico deu lugar às lágrimas: estava tudo destruído. 

Ficámos sem comunicações e é irrealista achar que nos devolverão o telefone e a internet brevemente. Os cabos estão todos no chão, há postes enormes partidos ao meio, e árvores apoiadas nas linhas. Dou-me por feliz por, apesar de tudo isto, nos terem devolvido a eletricidade - e agora é paciência. E tempo, muito tempo, que não há mãos a medir para concertar tudo, mas também não há milagres.

Quando consegui abrir o facebook, na segunda feira, à procura de notícias, dei-me com a publicação de uma blogger que, sinceramente, deixei de suportar há algum tempo, a gozar com a tempestade porque, afinal, se em Lisboa foi na boa e não se passou nada, então é porque não aconteceu - e uma apoiante da mesma (esta gente tem sempre apoiantes) a falar em histerismo à volta de meia dúzia de árvores caídas, como em todos os outros invernos.

Histerismo.
Convido-vos a passear pela zona centro e prometo-vos vista privilegiada para as árvores imponentes arrancadas pela raiz, ali, sem dó nem piedade. Outras tantas rachadas, partidas ao meio e, mais bizarro ainda, árvores com todo o ar de quem rodopiou com o vento, numa dança frenética que não aceitaram. 

Talvez possam também ajudar a encontrar o que voou e ninguém sabe muito bem onde está. Há portões em parte incerta, pedaços de portas, de janelas. Telhas então, é uma anedota: estão um pouco por toda a parte e é absolutamente aterrador perceber as distâncias a que se encontram do sítio onde, até ao passado sábado à noite, pertenciam.

E, se vierem, tragam vassouras. Pás. 
As ruas são lixo e as estradas estão perigosíssimas: há toda uma mistura de folhas com restos de telhas, vidros, parafusos vindos sabe deus de ontem, mais telhas de chapa. Ferros. Restos de casas, enfim: na minha zona, cada um fez a sua parte e tornámos a via transitável mas, infelizmente, nem em todas as zonas houve essa sensibilidade e circular na estrada é pisar terreno minado. Nunca sabemos ao certo onde vamos conquistar mais um bocadinho de prejuízo. Só mais um bocadinho para juntar a todo o resto.

Ontem à noite, a eletricidade voltou. 
72h mais tarde, quando os frigoríficos e as arcas já tinham desistido de nos conservar os mantimentos, alguém se lembrou de que poderia ser boa ideia devolver-nos a luz. Pelo menos isso. Foi uma pequena luz ao fundo do túnel, mesmo com tudo o resto que não há como recuperar. É, como já disse, um início. O início do recomeço, do dia zero das nossas vidas. E, então, recomecemos.

1 comentário:

Helena Barreta disse...

Receba um abraço muito apertado. Desejo que consigam recuperar quanto antes.