Depois de toda a odisseia para chegar à entrevista, subi as escadas, completamente encharcada e com a dignidade ferida, e dirigi-me à senhora da receção. Pedi desculpa pelos dois minutos de atraso porque me perdi, mas disse-me que não fazia mal, que tinha chegado muito a tempo e encaminhou-me para o fundo do corredor, para uma sala onde já estavam três senhoras sentadas, também elas para entrevista.
Nada de estranho até este ponto, só extremamente desconfortável - um dos meus problemas foi ter-me esquecido da confiança no útero da minha mãezinha, e sinto-me sempre extremamente desencorajada quando vejo os outros candidatos à vaga porque, mesmo que lhes faltem três dentes à frente ou pareçam dealers em part-time, eu acho que terão mais hipóteses do que eu. E, neste caso, tinham todas o dentiçal completo e aquele ar fancy que deixa uma pessoa a questionar as decisões que tomou, em relação à vestimenta, desde a camisola até às cuecas. Fui perscrutada com o olhar, especialmente pela moça mais nova, a única que não tinha idade para ser minha mãe.
Confesso que o que senti naquele momento roçou a humilhação: tinha andado imenso tempo à chuva e, apesar do cabelo seco, estava encharcada da cintura para baixo e parecia que a base me tinha dado aquele ar suado de quem tinha ido correr antes de ir para ali, e trocado de roupa sem tomar banho. Um must. Uma clara candidata. Só que não.
Até que aparece o senhor e nos encaminha a todas para a mesma sala: eu já tive entrevistas muito distintas, algumas delas muito esquisitas mesmo, desde as presenciais às por skype, desde chegar lá e descobrir que metade da entrevista seria em francês, àquela em que me chamaram barbie e que poderia muito bem ter sido para algo na indústria pornográfica. Mas, em grupo, apesar de saber que era possível, foi a minha primeira vez. Uma estreia em grande.
Inicialmente, quis acreditar que o senhor se limitaria a explicar as condições do emprego e, depois sim, falaria connosco em privado. Não demorei a perceber que não iria ter essa sorte.
Gente, poderá haver coisa mais desconfortável do que, além de já se estarem a sentir inferiorizadas por terem nascido com esta tromba que deus nosso senhor estava a guardar especificamente para uma máscara de carnaval e vos deu por engano, ainda estarem a ouvir o percurso profissional incrível das pessoas com quem estão a competir por uma vaga?
De repente, sentia que ainda estava a arrotar ao bolo do meu próprio batizado e que, de facto, é uma loucura tentar procurar um trabalho antes de se ter 20 anos de experiência ou um mestrado numa área completamente diferente daquela a que me candidato mas que, ainda assim, dá quatro milhas de avanço a qualquer outro ser que tente a mesma vaga com o 12º ano. Independentemente de tudo o resto. Sempre.
Não fiquei com o lugar, como é óbvio, coisa que foi percetível que aconteceria mal confessei que, sim senhor, ao contrário de todas as outras senhoras presentes, eu já trabalhei a recibos verdes. Aliás, uma delas chegou mesmo a perguntar que raio de modalidade de contrato era aquela, porque só tinha ouvido falar em contrato a termo certo ou incerto, nunca de recibos verdes - por onde andou estes anos todos, senhora? Em que gruta se escondeu, que também estou interessada em esconder-me por uns tempos?
Ah, Cinderela, mas qual é o interesse desta história?
Absolutamente nenhum, para ser franca. Foi só mais um episódio deprimente dos tantos que eu gosto de relatar. Esta entrevista aconteceu no meu último dia de trabalho na empresa de onde fui despedida - e, mesmo que tenha durado pouco, ainda foi a luz ao fundo do túnel durante algumas horas. Vale a pena só por isso.
E o resto, olhem... é (des)esperar.
4 comentários:
Vai juntando estes pequenos textículos e um dia publicas um livro, patrocinado pelo meu Euromilhões.
A vida está "desfíceu", né?!
Temos de estar preparadas para tudo, se calhar fazem entrevistas assim para ver como somos socialmente.
Cada vez que leio o título, vejo:
cinderela e as entrevistas tauromáquicas. eheheh
É quase isso ahah
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