domingo, 30 de abril de 2017

tu

[gosto de pensar no jogo de improbabilidades que nos juntou. gosto de pensar no nosso início leve, lento, despretencioso, na forma como começámos a gostar um do outro quase por acidente - trocaste-me as voltas à vida, deixaste-a do avesso. e, no fim de contas, percebo agora que é deste lado que ela é mais bonita.
fizeste-me estrear palavras e sensações. ensinaste-me a confiar, provaste-me que ainda há gente genuína e que vale a pena o risco; mostraste-me que as minhas teorias pouco valem na matéria do coração porque na prática o que conta é ser feliz sem medida. e, se hoje o sou, é porque te tenho comigo.
gosto de pensar que poderíamos nunca nos ter encontrado porque me sabe ainda melhor: não estamos juntos porque é fácil e dá jeito. estamos juntos porque conseguimos ultrapassar barreiras, lado a lado, até chegarmos aqui. e cá estamos nós: tu, o ser que é capaz de desmontar um computador mas não percebe como é que o telemóvel tira fotos a preto e branco. tu, que decoras cada frase dos teus vídeos preferidos, que sabes com exatidão todos os elogios que te fiz, que nunca te esqueceste da data em que te comprei dois pastéis, mas não sabes em que dia nos tornámos oficialmente namorados. nenhum dos dois sabe - foi num dia qualquer porque o que importa é que não acabe. e gosto ainda mais de ti por isso, meu amor, porque nunca poderia ter alguém ao meu lado que fizesse um par melhor comigo. e, mesmo que as tuas pernas sejam mais longas e os teus passos maiores, prometo continuar a caminhar ao teu lado. 
para sempre, seja o nosso para sempre o tempo que for.]

domingo, 23 de abril de 2017

gajas

O período atrasa-se duas horas e uma pessoa entra em pânico e começa logo a ver o preço dos carrinhos de bebé, das papas cerelac e o melhor restaurante para encher o bandulho no dia do batizado da cria. 

as marias que ninguém conhece

Chamo-lhe maria dos olhos lindos, porque os tem: nunca toca na campainha porque não quer incomodar e tem um timbre tão doce que derrete qualquer coração. Dói-me vê-la falar baixinho, cada vez mais baixinho, à medida que a doença a enfraquece e lhe vai roubando a vida tão devagar, e tão depressa ao mesmo tempo.

Quando chegou ao hospital, ainda andava pelo próprio pé. Não precisava de ninguém e pregou-me um susto dos diabos, durante a noite, quando entrou de repente no quarto onde eu estava, às escuras, durante as horas mortas em que me é permitido descansar nos intervalos das campainhas. Achei-lhe piada, apesar de tudo, e não me consegui zangar sequer quando percebi que era ela quem andava a confundir a pia dos despejos com uma sanita e insistia em ir fazer xixi lá.

Nas primeiras vezes em que quis ajuda para se levantar e andar, achei que era fita - coisa frequente no hospital. Depois percebi que não era: cada vez mais debilitada, tem vindo a perder capacidades de dia para dia. Hoje, já mal fala: ver as lágrimas nos olhos das netas transporta-me para um sítio onde eu não estive, há quase um ano atrás. E dói. Dói para caralho.

Trato-a como espero que tenham tratado a minha tia, até ao final. Guardo para ela a minha voz mais doce e toda a paciência do mundo. Faço-lhe festinhas no braço, dou-lhe a mão, sorrio-lhe: e, quando chega a hora de comer, consigo dar-lhe a sopa toda. Vamos comer, maria dos olhos lindos? E ela não responde - mas sorri.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

cinderela aconselha

Se há coisa que eu não percebo é o que passará pela cabeça das pessoas que, tendo familiares hospitalizados, se dão ao trabalho de os ir visitar para os deixar ainda pior. A minha sugestão é esta: se não vão para os animar, fiquem em casa.

Este aconteceu no domingo, mas tenho mais uns quantos para exemplo: estava no quarto deste doente quando a tia dele chegou. Aproximou-se da cama, viu a mão ligada, após a amputação do dedo médio, e exclama:

- ai coitadinho... - logo aqui já dava vontade de lhe atirar com a cadeira às costas-  o dedo já foi! se não tens cuidado, a seguir vai o braço.

(tive de me meter)

- ó senhora, isso é lá coisa que se diga?
- então, é a verdade! a seguir fica sem o braço.

Em casa
Esta mulher devia ter ficado em casa. Ou isso ou ser muda - às vezes é melhor do que dizer estes disparates.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

p.

[somos estranhos, diferentes, novatos nisto de sermos nós: escapámos à regra e guárdamos um álbum de recordações só nosso, folheamo-lo várias vezes, revisitamos conversas antigas, discussões necessárias que nos trouxeram aqui, piadas velhas, mas não encontramos a data. a nossa data; é uma qualquer. um dia percebemos que antes de sermos já éramos, e nunca precisámos de um rótulo para praticar o sentimento e a lealdade de quem tem ao seu lado tudo o que precisa para ser feliz - tenho-te a ti e és a minha lotaria, o meu porto seguro, o abraço onde, apertada, me sinto mais livre do que nunca.
somos estranhos, diferentes, novatos nisto de sermos nós, e às vezes as palavras parecem perras, presas numa garganta pouco habituada a vernáculos felizes e a felicidade tranquila. saem-me diminutivos porque o meu amor ficou guardado para mais tarde. coloco sorrisos onde faltam as palavras carinhosas que ainda não me habituei a usar - estamos a começar. estamos só a começar.
somos estranhos, diferentes, novatos nisto de sermos nós, e temos maneiras diferentes de agarrar a mão um do outro mas o mesmo tique envergonhado de quem ainda não sabe se pode: enlaçamos os dedos devagarinho, a medo, segredo um do outro, amor um do outro, nós meio um do outro. e somos eu e tu fora do nós: somos na mesma tudo quanto queremos ser, mas somo-lo juntos e agradeço por isso.
eu e tu, sem data de início e sem prazo de validade - até quando?, perguntaste-me um dia. dou-te a mão e encaro uma felicidade que ainda não sabia que poderia experimentar. para sempre, meu amor, para sempre.]

domingo, 16 de abril de 2017

hoje

Hoje foi dia de páscoa: acordei, às seis e meia, aborrecida com umas quantas questões injustas e a sofrer por antecipacão com os 12 turnos, quase seguidos, que tenho pela frente. Nunca dei importância à páscoa até este ano: falhei almoços de família com o mesmo pesar que tenho falhado redondamente nas horas de sono.

Quando cheguei ao hospital, esqueci-me da data. O barulho de fundo era o habitual, os cheiros do costume, as pessoas que repetem a estadia pelos azares da vida, e outras que lá caíram por acaso - não há dias nem horas. Há correria a toda a hora.

Depois, vi-o: já o conhecia. Conheci-o há umas semanas, noutro internamento - é cliente habitual no serviço. Rapaz simples, condenado pelos genes e tramado por uma doença, trato-o por tu para facilitar, embora - descobri-o hoje - tenha idade para ser meu pai. Conversámos. Meti-lhe o doce de amora no pão e o açúcar no café com leite - agitei a colher na caneca e coloquei-lhe o tabuleiro à frente. Dói-me sempre um bocadinho ter de fazer as coisas mais simples por alguém que nunca as conseguirá fazer pelas suas próprias mãos, os dedos curvados, desprovidos de sensibilidade. Um coração inocente que vai sendo amputado, dedinho a dedinho, com a leviandade de quem vai só tirar sangue. E dói.

Confesso que já me irritei com ele, por uma ou duas vezes: mas porque é que só pedes para trocar a fralda quando já tens a cama ensopada? É fácil: porque ele não sente absolutamente nada antes de se sentir encharcado. Fiquei zangada comigo mesma quando percebi isso, e hoje agradeci-lhe quando me pediu que lhe trocasse a fralda a tempo.

Ouvi-o comentar que não sabia se o pai o iria visitar hoje. Mas ele vem todos os dias? Respondeu-me que não, e os olhos dele não se despregavam do corredor. Recebeu visitas: perguntou pelo pai. Ouviu vozes na enfermaria e disse que parecia a voz dele - doeu-me ver aquela centelha de esperança no olhar dele, que desapareceu quando a tia lhe disse que ele não viria. Foi para os copos com a chifruda, como é hábito.

Ele, aquele menino grande, esperava-o numa cama de hospital - e eu percebi que às vezes também é isto, que deixei a minha família em casa para ir ser a família de quem se sente abandonado. Hoje foi domingo de páscoa e, apesar de tudo, valeu muito a pena ter tido de trabalhar.

sábado, 15 de abril de 2017

ironias

Há algum tempo que o tom de toque do meu telemóvel é a chop suey - correu sempre tudo bem, sem alaridos de maior mas, passada uma semana, continuo a rir-me um bocadinho por dentro de cada vez que me lembro de que me ligaram a meio de um funeral... e ouviu-se a frase we're rolling suicide.