À semelhança de qualquer outro amor, o gosto pela minha profissão não se desenrola em linha reta: se há dias em que gosto do que faço, há outros em que me apetece atirar a farda para o chão - claro que isto seria visualmente mais bonito se eu usasse uma bata e não me estivessem a imaginar a desfilar nua pelos corredores do hospital, mas é o que temos.
A ingratidão é desgastante. A falta de reconhecimento, o quase-desprezo. A ignorância.
Lembro-me de um dia me terem perguntado desde quando é que era preciso tirar um curso para ser empregada de fazer camas, e eu ri-me: no dia em que ser auxiliar numa enfermaria for só fazer camas, certamente vou deixar de sair do hospital com as pernas tão inchadas que as calças quase não me servem.
Toda a gente sabe que os auxiliares são os rafeiros do hospital - o que poucos reparam é que, na verdade, também são eles que estão sempre na linha da frente, quem mais cuida e conhece os doentes, os primeiros a aparecer quando eles precisam de alguma coisa. Ninguém imagina os quilómetros que fazemos naqueles corredores, só para garantir que todos estão confortáveis, que nada falta - e, mesmo assim, existirão sempre razões de queixa, por mais que se corra, por mais que se tente agradar a todos. Todos os doentes acham que são os únicos, e todos querem ser os primeiros. E nós, bichos estranhos de duas pernas e dois braços, desdobramo-nos como podemos mas nunca é suficiente. Estou sozinha, digo muitas vezes. Não consigo estar em todo o lado ao mesmo tempo - mas devia, aparentemente.
O que ninguém vê é que muitas vezes estamos atentos às histórias do senhor manuel enquanto fazem as cinco camas daquele quarto, até terem de lhe dizer que precisam de ir para outro, e depois ouvem a dona luísa a falar dos doze netos enquanto lhe dão banho. Porque importa, porque lhes faz falta, porque eles gostam de sentir que têm alguém que quer realmente saber deles. E eu quero porque sou uma colecionadora compulsiva de histórias e de sorrisos.
O que ninguém sabe é que às vezes voltamos para casa a pensar em quem fica no hospital. Que, nas poucas horas que passamos fora, nos lembramos deles, nos preocupamos com eles. Nos perguntamos se estarão bem ou não - porque, na maior parte do turno, fomos nós quem esteve por perto. Quem segurou na mão de uma
maria dos olhos lindos que pediu que não me fosse embora porque ela ia morrer - e não morreu, ainda. Mas olhar para ela dói-me e volta e meia deixa-me de lágrimas nos olhos: ninguém merece sofrer tanto. Ninguém - e como ela há tantas, tantas, todos os dias. Mas ninguém sabe que também nos custa.
O que ninguém repara é que, na maior parte dos dias, quase não comemos porque o tempo não estica e nós não nos multiplicamos. O pouco tempo que temos para comer é, muitas vezes, interrompido por uma campainha ou pelo telefone - e nem sempre é fácil, confesso, ouvir algumas coisas quando nos sacrificamos tanto em prol do bem estar deles. Também somos humanos, embora não pareça. Também temos necessidades básicas, mas adiamo-las, sistematicamente, porque não há tempo para nos lembrar-mos que somos pessoas antes de sermos cuidadores: falhamos refeições, falhamos as noites, falhamos aos nossos. Não sabem o que é passar dias e dias sem se conseguirem cruzar com as pessoas com quem vivem, nem o que é implorar por meia dúzia de horas de sono. Não sabem, repito, porque os auxiliares são só isso mesmo: não são médicos nem enfermeiros. Não têm estudos, não sabem nada.
E há dias em que isto cansa mesmo - cansa abdicar da família para tratar dos familiares dos outros, que nos tratam com desdém. Cansa trabalhar dias e dias a fio, sem folgas, e passar mais noites fora de casa do que em casa. Cansa, cansa mesmo, sentir que nada disto vale a pena - mas, enquanto sair de consciência tranquila e certa de que fiz o que podia, valerá sempre a pena. Mesmo que ninguém repare, mesmo que ninguém faça ideia.
Os auxiliares não são madres teresas de calcutá modernos, mas acredito que sejam, muitas vezes, os anjos da guarda da enfermaria - pelo menos é isso que tento ser. Apesar do trabalho, apesar da correria, apesar de quase não ter tempo para dar a atenção que gosto de dar a cada um, tento fazê-lo. Tento, sobretudo, aprender com as pessoas, porque isso é o que faço mais, todos os dias. E deleito-me com cada uma dessas aprendizagens, porque ser auxiliar também é ouvi-los, também é mostrar-lhes que são ouvidos. É ser o amigo que cuida deles enquanto estão doentes - é tão, mas tão mais do que fazer camas. Mas isso ninguém vê - e cansa.