terça-feira, 26 de maio de 2020

o covid resumido

Ao início, ninguém levou muito a sério: víamos os jornalistas ansiosos por notícias frescas, quase quase a acampar num aeroporto para garantir que assistiam à chegada do primeiro caso de coronavírus  a Portugal. Andavam tão desesperados que o povo ria e dizia que isto era como qualquer outra merda vinda da China e não iria durar nada.

Entretanto, a coisa começou a ficar feia. Espalhou-se a notícia de que estávamos a viver uma pandemia e ninguém sabia muito bem o que isso significava: uns, cagaram-se de medo e foram a correr comprar quantidades industriais de papel higiénico. Talvez acreditassem que, se se mascarassem de múmia, ficavam imunes. Outros foram abastecer-se de salsichas e atum para 32 anos, pelo que julgo que teremos muitas criancinhas a nascer depois disto que se alimentarão unicamente à base de arroz com sautchitchas até à vida adulta.

Fecharam os ginásios para podermos ficar todos gordos mais à vontade, e fecharam tudo o resto a seguir. Talvez não por esta ordem, que antes disto já estavam as criancinhas todas de volta a casa e os pais, que normalmente se queixavam do pouco tempo que tinham para ver as crias, a lamentar profundamente a decisão de não ter adiado a coisa um bocadinho para ir comprar preservativos. Paciência.

Depois, o caos: mandaram-nos ficar em casa e lidar com quem lá vivia a tempo inteiro, sem direito a fuga, sem legalizar o homicídio. Foi difícil para todos: uns divorciaram-se, outros fizeram filhos (os que vão comer arroz com sautchitchas uma boa parte da vida), e outros foram lidando como podiam com a situação - se deus nosso senhor - ou a pílula - quiser, estou no último grupo. Se assim não for, tenho de me ir abastecer de salsichas.

Nos primeiros tempos, as pessoas ficaram todas com medo de sair de casa e estavam tão gratos pelos que continuavam a trabalhar em hospitais e supermercados que começaram a ir bater palmas para a janela - os mosquitos que faleceram durante estes atos ainda estão por contabilizar, mas acho bem que entrem nas estatísticas da morte por covid-19, porque há que haver respeito. Fizeram pão, fizeram bolos, alguns consumiram álcool como que para comemorar as festas da aldeia, que certamente não existirão, e outros, como eu, não devem ter feito porra nenhuma porque a época é de stress agudo. Houve quem instalasse o tiktok - shame on me - para fazer companhia nas horas em que não há mais nada para matar o tempo, houve quem tivesse dedicado o tempo a construir teorias da conspiração.

As duas semanas iniciais foram-se prolongando e as pessoas foram-se esquecendo do #stayhome. A dada altura, o povo cansou-se de estar armado em herói de sofá e começou a ir para a rua, como se tudo isto não tivesse sido mais do que um sonho estranho e já nos pudéssemos lamber uns aos outros como antes. Pessoalmente, sou a favor de uma petição para que todo o contacto físico não estritamente necessário seja abolido para todo o sempre, que até nem desgosto tanto assim desta distância. Mas isto sou eu.

Inicialmente, o uso de máscara era opcional, depois passou a ser desnecessário, até porque temos poucas, e entretanto lá se começaram a fazer as de pano, reforçou-se o stock e passaram a ser obrigatórias. Estou com esperança de que haja um plot twist neste ponto e que entretanto possa voltar a ir às compras sem transpirar do buço como se tivesse acabado de correr 10 km.

Passámos do #stayhome ao #desconfinando, mas agora tudo de cara tapada e prontos para dar início a um assalto a qualquer momento. A máscara passou a ser parte do outfit e as pessoas conquistaram o direito a ser mal fodidas a tempo inteiro porque é mais fácil disfarçar o azedume. Em contrapartida, saíram a ganhar todos os que convivem com seres humanos que desconhecem a função de uma escova de dentes e vivem com uma camada de placa bateriana nos dentes, mais espessa do que a camada de gordura que me protege os abdominais. Agora pensem.

Para muitos, foi uma fase transformadora, em que alinharam os chakras e se tornaram melhores pessoas. Para outros, foi só uma ótima oportunidade para refletirem sobre as vidas merdosas que levavam, e para deixarem de conseguir dormir quando se aperceberam de que seriam obrigados a voltar para elas - nota-se que foi uma frase muito pessoal, não nota?

2020 só teve dois meses: janeiro, o mês mais longo desta vida para quem vê o dinheiro a lutar para chegar ao fim, e fevereiro, um mês curto e singelo, que serviu para nos animar antes das desgraças que março trazia no bolso. A partir daí, foi tudo cancelado, o tempo deixou de contar e, no fundo, ninguém sabe muito bem o que andou a fazer nos últimos dois meses e meio, como é que acabou com uma franja cortada em casa ou com o corpo cheio de pêlo a lembrar o chewbacca.

Algo me diz que a passagem de ano vai ser de arromba, com toda a gente junta  na rua a gritar e a bater tachos para enterrar de vez este ano miserável - e depois vamos todos para as urgências com covid e damos início à segunda vaga.

Não querendo desiludir ninguém... ainda só vamos a meio deste ano filho da puta. De nada.

3 comentários:

disse...

A mim chateou-me a chuva que acompanhou parte do confinamento. Aqui até há muito campo para andar sem tropeçar em ninguém, mas campo não combina com água, a não ser para fazer lama e passei semanas em que só punha os pés na rua para ir comprar mantimentos. E confesso que também atravessei a minha fase de paranóia, à espera do menor sinal de alarme para ir a correr tirar as medidas para o sobretudo de madeira, até porque o meu sistema respiratório dificilmente aguentará um embate de frente com o coronavírus. Além de que conheço bem o que é ficar sem respirar até começar a sentir a vista desfocada e as forças a fugirem para o cu. É mesmo o que me faz mais medo. Agora estou mais descontraído. Temo que demasiado descontraído, pois isso é meio caminho para o relaxe e o bicho ainda anda por aí. 😡

ernesto disse...

Para esses lados, é preciso cuidado porque de facto as coisas estão feias.
Também já ando mais relaxada, pelo bem da minha sanidade mental... há de melhorar!

Princess Cat disse...

E depois temos os casos das pessoas que continuaram a trabalhar, que ficaram ainda mais cansadas do que o normal devido trabalhar com menos pessoal ao mesmo tempo senão horas sozinho).
E claro, a resmungar constantemente porque as pessoas não têm cuidado e andam a tocar em tudo o que é sitio e já ficas a pensar em mais snifs de lixívia porque vais ter de ir desinfectar aquilo que a pessoa tocou só porque sim (não estou a exagerar, as pessoas mexem só porque sim)
Enquanto que quem estava de quarentena sai fresco que nem uma alface e com energia, quem continuou a trabalhar sai de casa mais cansado