segunda-feira, 25 de maio de 2020

onde quer que esteja.

Custa-me crer que tenha vivido vinte vezes o vinte e cinco de maio sem fazer a menor ideia de que, um dia, esta data carregaria o peso eterno do maior golpe que a vida me deu - há precisamente quatro anos, estava de malas feitas para uns dias no sul de frança e para o reencontro que mais desejei com a minha terceira avó. Não fazia ideia de que, à última hora, teria de encontrar um espaço extra entre as minhas roupas para levar até ela o último fato que lhe vestiram. Quatro anos depois, ainda não consigo colocar em palavras o que senti por ela me ter sido roubada por um triz
Deixei-me atormentar pelos ses durante muito tempo: se o ano fosse comum e não bissexto, se tivesse viajado no dia anterior, se os médicos tivessem sido mais rápidos a fazer o diagnóstico. Se tudo isto, se tudo aquilo: talvez ainda nos tivéssemos reencontrado na manhã seguinte. Talvez eu tivesse sido capaz de me despedir, ainda que a ideia de nos despedirmos de alguém que não volta me pareça vã, quase absurda. Não há palavras que assentem nesse momento, não há nada que se possa fazer senão agarrar a mão com toda a força e esperar ser capaz de agarrar, muito mais do que o corpo, a alma. A vida.

Perguntei-me muitas vezes onde falhei, em que momentos poderia ter ficado mais cinco minutos, em que dias da semana poderia ter ligado só para ouvir a voz dela, e se valeu mesmo a pena ficar amuada com algumas situações. Queria perceber o que perdi, o tempo que deixei passar assumindo que teria todo o tempo do mundo daí em diante, sem fazer a mais pequena ideia - ou sem aceitar - que a vida não é ilimitada. Hoje, dava tudo por mais uns minutos. Só mais uns minutos.

Começo a conseguir sorrir quando me lembro dela: quatro anos depois, já sou capaz de me lembrar de todas as vezes em que fugi de casa da minha avó para casa dela, em que atravessei a estrada, descalça, e me sentei nas escadas a falar sobre nada num tempo em que o tempo era o que menos importava. De quando lhe pintei as unhas dos pés e ela contou a toda a gente, como se fosse um grande acontecimento, e de todos os momentos em que rimos até chorar. Penso nos caracóis louros que lhe pintava em casa, e de quando a (des)penteava.

Não era santa: tinha um feitio terrível, ou não partilhássemos nós um sobrenome, e era um osso duro de roer. Gostava dela especialmente por isso: era o que era, e quem não gostava só tinha de se arredar. O problema é que era realmente difícil não gostar - por mais que fosse uma mulher de pêlo na venta, tinha um coração enorme.

Partilhávamos a obsessão pelo café: desde antes de eu ter idade para o beber, já me sentava com ela no canto da mesa a conversar ,durante horas, com uma água suja e bem doce. Hoje bebo-o forte, amargo e parte-me o coração que ela não tenha vivido o suficiente para me ver voar do ninho e eu lhe poder apresentar a minha casa.

Então, roubei-lhe uma chávena e foi das primeiras coisas que trouxe quando me mudei: nunca vai subir estas escadas, nunca se vai sentar à mesa, mas está presente em todos os dias da minha vida.

2 comentários:

Maria Teresa disse...

Não leve a mal o que lhe vou dizer, mas além de esses 'ses' a acompanharem durante muito tempo e só você pode dar a resposta correcta a cada um deles, oxalá que todas as perdas que inevitavelmente irá sofrer na vida, sejam pela ordem correcta.
Todas custam os olhos da cara, mas quando a vida troca as voltas e resolve levar quem deveria seguir muitos anos depois de nós, é que tudo deixa de fazer sentido...
Hoje, também era um dia que em minha casa se passava quase em bicos de pés, para a minha Avó não lembrar (tanto) uma das filhas que perdeu. Nunca imaginei, nesses tempos, que um dia iria dar valor a esse silêncio e criar alguns rituais que, se não os puder seguir por algum motivo de força maior, tenho o resto do ano estragado.
Também os 'ses' me acompanham há 32 anos, por muito que os responda e tenha a certeza de que as respostas estão correctas.Mas a verdade é que ele deixou de cantar desafinado comigo, não cresceu como os irmãos, não arranjou namoradinhas atrevidas, não..não...tanta coisa!
De todas as perdas que sofri ao longo dos meus 66 anos, essa é a que não consigo ultrapassar completamente; e não desejo que o meu maior inimigo sofra o mesmo...
Cinderela, pense nessas coisas boas e menos boas que viveu com a sua Avó, ela foi quando tinha de ir e como tinha de ir, sem que a neta a visse e, eu acredito nisso, quer vê-la risonha (você tem um sorriso tão bonito!) e feliz. Lembre-se que 'um homem só morre quando morrer o último que dele guardar memórias'. Transmita-as um dia aos seus pimpolhos e a sua Avó andará por 'cá' muitos anos. Um beijo!

Coisas da Andreia disse...

Ficam as saudades e as lembranças de todos os bons momentos .