A vida acontece lentamente. Há dias em que mal chega a acontecer.
Aos meus olhos, esta é uma vila montada a retalhos, como se cada fragmento tivesse vindo aqui parar por mero acaso e não houvesse qualquer relação com o resto. Provavelmente serão todas assim, mas esta, por me parecer mais vazia e mais triste do que o resto do mundo, ganha destaque aos meus olhos.
Não sei quantas pessoas vivem neste prédio, mas estou certa de que algumas delas têm como principal ocupação pôr e tirar o carro da garagem - entrada é tão absurdamente íngreme que me haveriam de pagar para lhes repetir a proeza. Há malucos para tudo. E medrosos para nada, suponho.
Os carros passam depressa, demasiado depressa; volta e meia, ouve-se o chiar característico de uma travagem brusca - os condutores querem tanto fugir daqui a sete pés, ou a quatro rodas, que não reparam na pobre da lomba que só existe para os tentar deter mais um bocadinho por estas terras de ninguém. Ou então sou eu quem gosta de poetizar o que de poético tem menos que nada.
Nos dias de sol, passeio por aí e, nos restantes, ou me esqueço do quanto adoro andar à chuva ou o peso da responsabilidade nos ombros cala essa vontade. Sento-me no café: a senhora é doce, pergunta-me se está tudo bem e serve-me um café cheio, forte, sem açúcar. Gosto de gente que nos aprende assim tão rápido. Gosto dela. Abro o livro e perco-me no primeiro trago.
Há vidas empilhadas: numa varanda, duas senhoras de pijama, a altas horas da manhã, cochicham, na janela de baixo, uma senhora pendura cuecas na corda, na varanda da frente, um homem olha para a rua e atira um cigarro para o chão que cai logo ao lado de um carro. Talvez se conheçam, talvez façam todos por não se conhecer.
Continuo a andar.
Aqui e ali há casas em ruínas, que mantêm uma beleza triste como se ainda esperassem voltar a ser o lar de alguém. Por enquanto, contentam-se em albergar ratos e outros bichos, ignorando que são parte de uma maioria. A vida parece esgotar-se nestes recantos sombrios, devagarinho, tão devagarinho quanto acontece por aqui.
Cada coisa parece não pertencer a coisa nenhuma, tal como se, lá está, esta vila montada a retalhos fosse feita de fragmentos de histórias que não se cruzam na esquina. E por isso, principalmente por isso, nunca chega a ser uma história.
Sentado no parapeito de uma janela, um gato observa quem passa, qual cão de guarda numa versão felina. Fotografei-o porque o achei bonito. E, logo a seguir, achei-o triste também - observava-me atentamente, sem fazer a mais pequena ideia de quem eu sou, sem a menor intenção de algum dia vir a saber. Observava-me, somente, nesta terra de ninguém, fragmentada, desfeita. Não importa quem eu sou, pois não?
No fundo, é isto: somos todos gatos na janela.
2 comentários:
Nunca mais tentas conhecer alguém que te publique um livro... é uma pena andares por aqui a atirar pérolas a porcos, com tanta gente a escrever livros que não servem para mais do que acendalhas para a lareira.
Olha, acho que já te prometi isto uma vez (ou mais, que eu cá, quando se trata de promessas, prometo mundos e fundos eheheh): se um dia me sair o euromilhões (eu não jogo, mas a minha Maria joga por mim eheh), pago-te a edição do primeiro livro e não quero nada dos lucros.
Combinado? :)
Ahaha, há taaaanta gente a escrever tão melhor :) mas este soube-me bem. Já tinha saudades ;)
Fico à espera de que te saia o euromilhões ahah
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