sábado, 18 de março de 2017

é a vida, dizem

Oitenta e um anos sulcados na pele não foram capazes de lhe roubar a beleza de um par de olhos azuis doces, tão doces, que me fez gostar dele desde a primeira vez que o vi. Disse-me que a maria dele tem oitenta e cinco anos e parecia uma jovem, e eu habituei-me a vê-la, dia após dia, sentada na cama dele com o ar assustado de quem está a perder um dos seus.

Sempre que entrava no quarto, metia-me com ele; às vezes tinha de gritar porque a idade não lhe poupou a audição, e ele ria-se. Piscava-me o olho; sorria-lhe. Ralhava-lhe muitas vezes porque teimava em andar descalço pelos corredores do hospital, mas respondia-me que era assim que estava habituado e eu não era capaz de me zangar. Perguntou-me se podia comer bolacha maria porque estava cansado de beber só chá - e comeu. Nunca se queixava.

Era doce. Talvez uns dos doentes mais doces que algum dia tive: na última vez que o vi, entrou no jogo preferido dos doentes - arrancou o catéter e disse à enfermeira que tinha sido eu. Ri-me. Piscou-me o olho quando ninguém estava a ver - não consegui não achar adorável. Gostava daquele senhor que teimava em não usar o urinol porque preferia andar até à casa de banho e fazia questão de manter a autonomia no lugar - só queria que o ajudassem a lavar as costas.
Morreu ontem de manhã - recebi a notícia como um murro no estômago. O primeiro murro no estômago desde que entrei neste mundo. A primeira morte que me causou impacto, o suficiente para que escrevesse sobre ele, para que haja um registo, para que o mundo saiba que ele existiu. Chamava-se manuel... e morreu sem saber o quanto me marcou.

2 comentários:

Anónimo disse...

Há pessoas assim. Infelizmente morrem como os outros. É a vida... ou será a morte?

ernesto disse...

O título ia ser precisamente isso xD algo como "é a vida... ou a morte" :p