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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

amores rasgados ao meio

Eu estou aqui, joana. 
Vim àquela pastelaria onde vínhamos, religiosamente, todos os sábados de manhã, antes de eu ter deixado de ter tempo, mas hoje não pedi um café cheio, em chávena fria, nem um pastel de nata; hoje pareceu-me melhor quebrar o ritual e limitei-me a pedir uma garrafa de água só para ter uma desculpa para me sentar numa das mesas.

Escolhi a da janela, aquela que fica de frente para a igreja. Odiavas este lugar, porque te sentias sempre observada por quem passava na rua, apesar de a maior parte das pessoas passar cabisbaixa e com pouca vontade de ver o que estávamos a comer. Tu eras simples e não chamavas a atenção de quem não soubesse o mulherão que se escondia por baixo do ar humilde e acanhado.

Não conseguia deixar de olhar a porta daquela maldita igreja. Tinham-me dito que era hoje e não consegui resistir ao impulso de vir até aqui. Provavelmente, foi uma forma de me punir. De tentar acelerar o suicídio lento patrocinado pelos cigarros que se tinham tornado nos meus mais fiéis companheiros depois de te ter perdido.

Entre duas baforadas, peguei no telemóvel e marquei o teu número - tinha-o apagado da memória do cartão, mas nunca da minha. Não sei porque o fiz: não tinha nada a acrescrentar a tudo o que já te tinha dito, e nem tão pouco te queria estragar o dia, mas a perspetiva de ouvir a tua voz silenciou-me a razão. Confesso: também tinha alguma curiosidade de saber o que aconteceria. Nunca me tinha perguntado o que fariam os noivos no dia do casamento, se se limitavam a viver o momento ou se escondiam o telemóvel em sítios inimagináveis para poder dar uma vista de olhos no facebook e no instagram em cada ida à casa de banho. Ri-me. Nunca largavas o teu, e imaginei-te a escondê-lo no bouquet. Diverti-me a imaginar o ar de horror dos convidados quando ouvissem a música dos system of a down a sair diretamente do centro das rosas. Não atendeste. Claro que não.

Esmaguei o cigarro no fundo do cinzeiro enquanto sentia o mesmo a acontecer com o meu coração. Mais uma vez.

Já se tinham passado mais de dois anos desde o dia em que me disseste que ias sair de casa. Não acreditei; achei-te sempre demasiado fraca para que fosses capaz de arrastar uma mala pela gare com todos os teus sonhos. Com a tua vida toda - enganei-me bem. Levaste os teus e os meus. Levaste a tua e a minha.

Nos três primeiros dias, não voltei a casa. Mantive-me o mais ébrio que me foi possível para não me lembrar de nada, dormi num banco de jardim e numa pensão rasca com mais três espanhóis. Valia tudo para não ter de encontrar a nossa casa semi despida - mas depois, com a roupa imunda e meio rasgada, achei que era hora de voltar.

Quando entrei, quis arrumar as malas e sair de vez. Livrar-me da casa onde fomos felizes, recomeçar do zero - depois consolei-me com o pouco que me restava de ti. O teu cheiro na roupa de cama, a escova de dentes esquecida, o frasco de shampô quase vazio que não quiseste levar. Demorei mais tempo do que me orgulho a ter coragem de trocar os lençóis, e mais ainda a passar um dia sem chorar. Demorei demasiado tempo, minha joaninha. Demorei demasiadas lágrimas tuas a tentar perceber o que te fazia chorar.

Dizia-te sempre que não entendia em que medida te poderia estar a fazer mal: ao fim de nove anos juntos, dava-te tudo quanto podia, pagava todas as despesas, oferecia-te flores no vigésimo primeiro dia de cada mês para te mostrar que nunca me esqueci do nosso dia. E mesmo assim, queixavas-te - de que nunca te ouvia, de que nunca íamos a lado nenhum, de que nunca te ajudava em casa, de que nunca mais te tinha abraçado. A verdade é que às vezes mal dava por ti, e quase nunca reparava realmente nas coisas que fazias. Elas apareciam feitas, e isso bastava-me.

Amava-te como se ama a mulher das nossas vidas, mas via-te como a empregada doméstica a quem eu oferecia flores. Desculpa-me, meu amor, mas eu vivia com a cabeça no trabalho para te poder dar tudo, e esqueci-me de te dar o mais importante. Por mais anos que viva, nunca me hei de perdoar pela forma como te fui perder - percebi, quando te deixei no comboio, que não havia nada a fazer. Estavas cansada da forma como te tratei, e de nada me adiantaria prometer que seria diferente. O daniel com quem te mudaste, com quem pintaste paredes e estreaste os pratos, tinha ficado perdido no tempo. Já não existia. 

Há danos irreparáveis quando se lasca um amor assim. Eu tinha matado o nosso, lentamente.

De repente, a porta da igreja abriu-se. Vi os convidados a sair, a alinharem-se nas escadinhas, de ambos os lados da porta. Sorri. Sempre disseste que ias odiar que te enchessem o cabelo de arroz no dia do teu casamento, mas, ali, à distância, pareceu-me que estavas condenada. Rezei para que estivesses tão feliz que isso nem importasse - e, quando te vi, finalmente, tive quase a certeza, a avaliar pelo teu sorriso, de que as minhas preces foram ouvidas. Estavas mais bonita do que nunca. A felicidade fica-te muito bem, e lamento não te ter sabido vestir essa roupa, tanto quanto lamento não ser o homem que saiu contigo, de braço dado, da igreja. 

Acendi outro cigarro à saída da pastelaria, mesmo a tempo dos nossos olhares se cruzarem.
«Cheguei tarde, não cheguei?», perguntei, baixinho, a mim mesmo. Sei que não me ouviste, mas vi-te um sorriso matreiro nos lábios, como quem diz:

«tu nunca soubeste chegar a horas.»

E não mesmo. 
Que sejas muito feliz, amor da minha vida.

sábado, 28 de janeiro de 2017

[like a bridge over troubled water]

O dia de amanhã não importa assim tanto,
Foi a vida ou o universo ou qualquer outra entidade a girar a roleta que nos fez calharmo-nos em sorte um ao outro. Não sei quem ditou este cruzamento nas nossas vidas e que, daí em diante, caminharíamos lado a lado, na mesma estrada, mas gostava de lhe agradecer.

Há dias em que me apetece adiantar os relógios, rasgar mais folhas no calendário. Acelerar o tempo para combater a tua calma, para estar há mais tempo na tua vida: não me podes culpar, mas há dias em que o desejo é mais voraz e fala mais alto do que a minha admiração pela tua serenidade; gosto da paz que me transmites mas também gosto da vida em roda viva, da pressa, da sofreguidão de ser.

Outros há em que é precisamente na tua calma que me quero perder. Na forma leve e lenta como levas as coisas, no jeito perfecionista com que colocas um pé à frente do outro sem descuidos, sem dar um passo maior. Um salto. É fácil falar com alguém como tu porque sei que, o que quer que digas, será verdadeiro: desculpa-me pelos dias em que me esqueço disto. Às vezes tremem-me as pernas e volto a cair de joelhos por dores antigas que eu vejo desenrolarem-se diante dos meus olhos uma e outra vez; a culpa não é tua. Dá-me a mão enquanto fores capaz, ajuda-me a levantar e eu não irei a lado nenhum sem ti.

Não és perfeito e temos tanto de iguais quanto de opostos: juntos formamos uma melodia imperfeita, talvez a mais imperfeita de todas, mas é bonita porque nunca teve pretensões de ser qualquer outra coisa que não o que era: a melodia que junta duas almas que se encontraram num dos inúmeros acasos da vida e que nunca sabem ondem vão chegar. Talvez nunca cheguemos a parte alguma mas, por agora, gosto de a ouvir tocar porque me lembra de que te tenho na minha vida e da sorte que tive nesse jogo de improbabilidades que trouxe até mim alguém como tu.

Guardo-te as palavras bonitas como uma mãe guarda o último pedaço de bolo para o filho: quero que estejas certo da tua posição na minha vida, do carinho que te tenho e do quanto te desejo o melhor. Guardo-as para ti porque, neste momento, o que sinto de melhor te pertence, a ti, a pessoa mais diferente e especial que conheci até hoje. Guardo-as porque são a maior retribuição que tenho para o que me fazes sentir.

Entorpeces-me os sentidos: o teu sorriso faz-me sempre pedir por mais, a forma como me abraças para espantar os medos torna qualquer tentativa de fuga impossível porque me rendo a ti e os teus beijos foram a primeira coisa a acelerar-me o coração em muito tempo. E a facilidade que temos em falar sobre tudo - menos sobre o sporting porque eu não ligo a futebol mas não resisto a ferir-te os sentimentos - reforça a ilusão de que já nos conhecíamos mesmo antes de nos conhecermos. 

Acredito que o para sempre exista com a data limite que lhe queiramos impor. A minha é enquanto der; quero-te comigo para sempre, enquanto a convivência nos for possível, enquanto fizer sentido, enquanto houver espaço no teu coração para me albergar. Gosto de ti. Tanto, mas tanto.

Bem vistas as coisas, o dia de amanhã não importa assim tanto - desde que te tenha ao meu lado, estará tudo bem.

domingo, 27 de setembro de 2015

excertos desse nada

Nunca nos encontrávamos a horas certas, mas ela esperava sempre por mim - sentava-se no chão, de pernas penduradas na borda do rio, virada para o cais que jurava a pés juntos ser o seu sítio preferido mas que eu sempre soube que não era mais do que uma metáfora; queria que eu atracasse de vez. Queria ser o meu porto seguro. E era-o, mas não o sabia.

Lembro-me sempre de a encontrar quase sempre a escrever e com o ar descontraído de quem não se esforçava minimamente para ser tão maravilhosa quanto era; sê-lo-ia na mesma se não se esforçasse, mas nunca o descobriu. E, quando eu chegava, tinha de ficar uns momentos a observá-la de longe, o cabelo caído nas costas em forma de V, uma perna a balouçar levemente enquanto a minha menina apoiava o caderno no outro joelho e escrevia vigorosamente o que lhe ia na alma; nunca me deixava ver, mas o rosto dela enquanto escrevia era já por si só um poema que eu não me importava de ler eternamente. Mas, mais uma vez, nunca lho disse.

Um dia ofereci-lhe um caderno e uma caneta com o nome dela escrito. Queria que ela o visse como um gesto romântico, como uma daquelas quase-provas-de-amor silenciosas que oferecemos só para mostrar ao outro o quanto nos apaixona, mas só consegui comprar uma guerra. «Em vez de vires a horas, compras-me isto para me manteres entretida à espera. Sempre, sempre, à tua espera.». Armei-me em parvo, como sempre «Mas nunca chegámos a marcar uma hora!», e juro que achei que ela me ia bater, tal era a fusão da raiva e do desapontamento impressos no seu rosto. Virou-me as costas, mas no dia seguinte voltou para o cais, como sempre. E eu, como sempre, deixei-a à espera durante horas, embora soubesse que ela se sentava lá, religiosamente, assim que saía do trabalho. Estava mal habituado, é o que é.

Não me interpretem mal, não é que eu não gostasse dela! Se eu acreditasse num deus, certamente só ele saberia o quão louco e apaixonado eu estava por aquela miúda. Mas era um sacana descomprometido e tinha-a tão segura em mim que nem me preocupava em tentar prendê-la. Sabia-a minha, tal como achava que ela sabia que eu era dela - não há necessidade de verbalizar o que os corpos sabem de cor, pois não?

Ela não era fácil de aturar, mas eu ainda gostava mais dela por isso - estava sempre a resmungar e ficava melindrada pelas coisas mais sem sentido, ficava desconfiada e jurava a pés juntos que um dia desses se iria embora e eu nunca mais a veria, mas era sempre nesses momentos de vulnerabilidade, em que eu a apertava contra o meu peito e a sentia descontrair como se os meus braços fossem a sua casa, que eu a sentia mais minha. Que eu nos sentia mais nós.

Envergava quase sempre roupa escura que contrastava com a luminosidade do seu sorriso. Não digo que era louco por ela? Anos depois, ainda me causa arrepios lembrar-me da forma como me derretia sempre que a via sorrir. E o quanto me arrependo por tudo o que lhe fiz.

Amava-a tanto e nunca a soube amar em condições. Deixava andar, porque para a frente é que era o caminho e eu sabia que ela me acompanharia, mesmo que dois passos atrás, mesmo que às vezes tivesse de correr um bocadinho para não me perder de vista. A certeza de que ela lá estaria sempre dava-me o à vontade suficiente para pensar em nós como um casal de idosos que tinham passado a vida toda lado a lado; não importava a quantidade de coisas que eu metesse à frente dela, mesmo que demorasse uns dias, eu voltava. E ela estaria lá.

Demorei um bom tempo a perceber que ela me metia em primeiro lugar, e demorei mais tempo ainda a perceber que a iria perder se continuasse a deixá-la esperar que um dia as coisas mudassem.

Então, tomei uma atitude: um dia saí do trabalho a correr, fui a casa tomar banho e enchi-me do perfume que ela mais gostava. Depois, sentei-me no cais, no mesmo de sempre, ainda antes da hora de ela sair do trabalho; tinha decidido que era hora de lhe dizer que a amava e de lhe pedir desculpa por todas as vezes que a fiz duvidar de mim, por todas as vezes em que a fiz duvidar dela própria.

Mas as horas foram passando, e ela não apareceu. 
Nem nesse, nem nos dias seguintes. Semanas. Meses.
Todos os dias eu repetia o ritual, esperançoso, mas ela nunca vinha. Não atendia o telemóvel e a casa dela estava já ocupada por outra família.

Nunca mais a encontrei e agora, passados tantos anos, ainda me pesa o peito ao sentar-me aqui, no mesmo cais onde a perdi para sempre, no mesmo cais onde um dia ela se cansou de esperar por mim. Mas, embora doa, continuo a vir aqui: o último sítio onde vi o amor da minha vida.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

excertos do nada

Ao fim de uns tempos, aceitei marcar um encontro com a rapariga; estava já à espera, sentado naquela esplanada sofisticada, junto ao rio, onde tu nunca quiseste ir por ter um ar caro e tu tinhas mais o que fazer ao dinheiro, quando ela chegou. Estou mais ou menos certo de que não houve uma única cabeça que não se tenha virado diante daquela figura imponente, de saltos altos e vestido curto, e todo o ar de quem tinha acabado de sair do cabeleireiro; sorri-lhe. Ela era inegável e irremediavelmente bonita, mas eu não conseguia entender o porquê da dimensão do aparato. 
Perguntou-me, imagina só, porque é que a levei ali quando, sempre que me via, eu estava naquele cafézinho que fica logo abaixo do meu prédio, sabes? Aquele que tem a tinta da parede de fora a descascar-se, as mesas de madeira carcomidas pelo tempo e o dono trata-me pelo nome, traz-me o jornal e o café pingado antes mesmo de eu pedir. Aquela mulher queria saber porque é que eu não a levava a um dos meus sítios preferidos neste mundo. Imaginas tamanha falta de noção? Mas não lhe expliquei que levá-la ao café do senhor vítor me seria  quase como levá-la a minha casa, nem tão pouco lhe contei que não estava pronto para a deixar instalar-se nas minhas memórias quando ali entrasse. E então disse-lhe que ele estava em obras e voltava no domingo. 
Não tínhamos assunto. Ela não quis tomar nada e eu acabei por pedir apenas uma água, por vergonha - explicou-me, com um ar triunfante, que não queria estragar a maquilhagem, e eu devolvi-lhe um sorriso amarelo, atónito por a miúda preferir passar fome a ficar sem baton, e lembrei-me de ti, meu amor, e da tua voracidade, da forma como nunca te embaraçavas nem te preocupavas demasiado com nada. Dava-me gozo ver-te comer com prazer, ver-te ser tão real, tão humana, tão desalinhadamente perfeita. Ela parecia ser viciada em regras, parecia querer a vida com um manual de instruções - tu andavas sempre ao contrário do suposto, arrancavas em terceira e não querias saber de nada. A tua descontração tirava-me do sério mas, no final de tudo, tinha saudades desse amor calmo. 
A dada altura, ela ajeitou o cabelo, como se ele não estivesse já perfeitamente preso num rabo de cavalo; isto enervou-me. Lembrei-me do teu cabelo desalinhado, quase sempre por pentear, caído pelos ombros, e da forma mecânica e desajeitada como o metias para trás da orelha, de tempos a tempos. Vi-lhe as unhas enormes e cuidadas e lembrei-me das tuas, sempre roídas até ao sabugo, sempre uma lástima. Sempre foste tão errada em tudo que parecias preencher-me as medidas certas. E, no meio de tudo isto, nunca, nem durante um único minuto, eu consegui amar-te menos. Sempre foste tão irritante, meu amor, porque nunca te consegui decifrar o suficiente para perceber como que raio conseguias tu pôr-me tão louco por ti.  
Quando dei por mim, já nem a estava a ouvir - não me saía da cabeça a forma como fomos estúpidos. Destruímos o amor mais puro que eu algum dia senti por pura cobardia. Por conveniência - ou pela falta dela. Separámo-nos porque não dava jeito, porque queríamos ver mais do mundo. O que eu não contava era que, de alguma forma, tu te tivesses transformado no único mundo que eu queria conhecer de cor e salteado. 
Nem me lembro do que lhe disse - inventei uma desculpa e fugi dali, quase a correr; parei no meio de uma rua qualquer com um sorriso de orelha a orelha, e enviei-te uma mensagem «afinal, és a única que eu consigo amar. és o único mundo que quero conhecer. recomeçamos?». Não respondeste. Mas eu sabia que não o farias. 
Fui andando para o café do senhor vítor. Sentei-me na mesa do costume, junto à janela e, quando ele se aprontou a trazer-me o café pingado, pedi-lhe outro, sem leite, cheio. Em menos de nada, estavas à minha frente, tão desalinhada como sempre, mais bonita do que nunca.
E recomeçámos.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

meios escritos

Desde que te foste embora, deixei de fazer as refeições à mesa - não conseguia lidar com o teu lugar vazio à minha frente sem começar a pensar naquela altura em que éramos felizes. Chama-me louco - não fui capaz de lavar a tua caneca no dia em que te foste embora. Nem nas duas semanas que se seguiram. De alguma forma, achei que poderias querer voltar e tomar o teu café, mesmo frio, mesmo insípido, mesmo depois de ter estado entre nós na discussão que ditou o nosso fim. Se voltasses, queria que soubesses que o teu lugar estava intacto. Tal como o meu amor por ti.

Naquele dia, não foi diferente. Acordei tarde e com a casa num caos - tinha mais cuidado com o teu lado da cama do que com o resto da casa, e estava capaz de jurar que o colchão ainda guardava as formas do teu corpo. E o teu calor. Não queria perder o pouco de ti que tinha ficado para trás; sentei-me no chão da cozinha para tomar o pequeno almoço. E depois saí.

Apanhei o metro para o trabalho mas saí quatro paragens antes; não era capaz de me sentar por trás de uma secretária e fingir que sou um tipo normal, com um emprego normal e uma vida normal. Não naquele dia em específico em que fazia precisamente dois anos desde o dia em que consegui que te rendesses e que aceitasses caminhar lado a lado comigo. Sempre sofri de uma memória terrivelmente boa, meu amor. 

Arrastei-me pela cidade o dia todo. Não tinha onde ir mas também não queria ir a lado nenhum; precisava de não estar parado e de ter uma réstia de esperança de te encontrar por acaso. Mas isso não aconteceu.

Já perto do pôr do sol, fui ao teu sítio favorito, o tal onde te pedi em namoro; de alguma forma, sempre soube que te encontraria lá, mas precisei de esgotar todas as outras hipóteses antes disso. Queria correr para ti, mas paralisei; és tão bonita quando nem fazes ideia disso que era impossível não ficar ali, só a olhar para ti, com a figura entrecortada pela sombra de um sol que se escondia, provavelmente com vergonha de não conseguir ser tão brilhante quanto tu. Ou então era só porque estávamos no final da tarde, mas bem sabes que sempre fui mais dado ao romantismo do que à lógica - perdoa-me os tropeços.

Quando te viraste para mim, soube que também estavas à minha espera; sorriste. Demorei uns vinte passos a perceber que tinhas as lágrimas nos olhos e o mundo inteiro a pesar-te nos ombros. Parei; estávamos à distância de um braço mas não sabia se poderia avançar. Queria abraçar-te, depois de tudo, mas sempre me foste realmente indecifrável e era impossível saber se era seguro ou não fazer de conta que não se tinham passado meses desde a última vez em que foste minha.

«Demoraste», disseste. Respirei de alívio; «não sabia se devia vir». Nesses segundos, vieram-me à memória todas as palavras da última discussão, a forma como nos culpávamos um ao outro pela rotina, pelos dias sem sabor, pelo nada em que tínhamos transformado as nossas vidas. E a forma como deixámos que mal entendidos nos tivessem destruído. «Desculpa», salta-te da boca. E eu desculpo-te porque não sei viver sem ti e porque não vale a pena forçar-me a aprendê-lo. Sorrio-te. Amo-te mais uma vez, mais um bocadinho do que todas as outras, amo-te para sempre enquanto o sempre for nosso e feito à nossa medida. Estendo-te a mão, «vamos?». E fomos. Fomos ali ser felizes e não voltámos mais.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

if

Se arranjares uma namorada, avisa-me, 

digo-te, e dou por mim a imaginar esse momento em que me contas que há alguém. Isto parece-me quase o mesmo que sentir dores no membro amputado, mas não consigo deixar de sentir essa dor miudínha só de me imaginar a perder-te para outra. Mesmo que nunca tenha chegado a ganhar-te.

Não te quero deixar ir, por mais que sejamos estranhos e difíceis, por mais que seja demasiado complicado explicar que sucessão de acontecimentos improváveis nos trouxe até aqui, exatamente onde estamos agora, não te quero deixar ir porque me viciei em ti. Não estamos apaixonados - pelo menos, não convencionalmente. Temos antes aquele carinho infindável, típico dos casais antigos a quem uma vida inteira lado a lado não chegou para se explicar o quanto se gosta. E então, entrelaçam os dedos porque também não se querem deixar ir, e ai de quem diga que os dedos entrelaçados com amor não são à prova de tudo. Até da morte.

Somos a sala branca cujas paredes nos engolem; quase nunca somos nada mas lá vamos inventando outras formas de ser o que conseguimos; tenho pena de não termos direito a uma mão cheia de reencontros, ao som das rodas da mala ansiosa pela gare, a pedir por um abraço e - ah-ah, o eterno! - um beijo na testa, suficientemente despreocupado para que se subentenda que temos tempo para mais. Mas não temos; não temos nada a não ser um punhado de sonhos mergulhado na água gélida da realidade. E é isso que dói mais.

Se arranjares uma namorada, avisa-me,

digo-te enquanto desejo secretamente que isto nos chegue para sempre, que não faça mal, que não seja necessário procurarmos conforto noutros braços, que sejamos eternamente esse amor calmo, o tal igual aos amores antigos. Mas sei que é uma questão de tempo e eu só posso esperar que sejas feliz.

Pelo medo, não me quis prender, mas prendi na mesma. Amarrei-me de tal forma que, quando tentei mostrar a mim mesma que ainda sou dona da minha liberdade, tudo o que consegui sentir foi uma corda no pescoço, que me puxa e me sufoca, e me mostra que nunca somos realmente livres quando gostamos assim de alguém porque mais nenhum coração me serve de abrigo nos dias frios, porque mais ninguém me faz sentir o mesmo que  tu.

Se arranjares uma namorada, avisa-me,

digo-te, e prometo a mim mesma que vou lutar contra a mágoa e contra a vontade de te roubar a quem te tentar levar de mim. Mas não prometo, meu amor, não prometo que te deixe ir.

domingo, 28 de dezembro de 2014

,

Vivi tanto tempo na ilusão de que conseguia meter uma rédea no que sentia que não consegui perceber o quão feliz estava nos poucos momentos em que me esquecia de a deixar curta - não queria apaixonar-me por ti e tudo o que ia sentindo sabia-me a errado, a proibido, a estranho, mas não conseguia parar; fugia-te porque sabia que não me deixarias ir embora de forma alguma, que por mais que eu tivesse a mania de que conseguia manter um coração livre e indomável, me irias agarrar pela cintura e eu fingir-me-ia de contrafeita só para não parecer mal. Um dia, deixaste de me segurar e eu fiz de conta que não me importava de ir embora.

Se pudesse voltar atrás, nem pensaria duas vezes - mas não posso. Pelo menos, é o que dizem, que para a frente é que é o caminho e que não há mais nada que eu possa fazer com o passado - ninguém entende que do passado eu não quero mudar nada; só te queria puxar para o presente e deixar de sentir a tua falta todos os dias. Queria poder inventar o tempo que nos faltou no tempo em que achámos que ele nos pertencia - queria-te aqui agora, sentado comigo a ouvir o crepitar da lareira, ou queria-te comigo nas manhãs frias em que, sem quê nem para quê, volto à praia onde um dia os nossos passos ficaram marcados lado a lado, na altura em que ainda caminhávamos de mãos dadas e o mundo nos fazia mais sentido assim. 

Tenho saudades tuas mas não há nada que eu possa fazer com isso. Não é tão simples quanto ligar-te a meio da noite e pedir-te que voltes, ou aparecer à tua porta à espera que me deixes voltar para o abraço que me sabia como um regresso a casa - não posso sequer pedir-te que me ouças porque sei que já é tarde e há mais mundo para além do que se desfaz - mas talvez não se devesse desistir de ânimo leve enquanto todas as músicas me lembram de ti, enquanto é a ti que comparo todas as pessoas por quem me interesso, enquanto as palavras mais banais te me trazem de volta à memória as conversas mais sem sentido que algum dia tivémos - sinto a falta do que foi nosso mas sinto ainda mais falta do que não foi, pela certeza de que tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse compreendido a tempo que na vida real ninguém me dá oportunidade de escrever um rascunho antes de passar a nossa história com uma letra bonita para o papel onde a podemos mostrar ao mundo. E eu lamento ter-te perdido. Lamento não te ter dito que não estava a fugir de ti - estava à espera que me desses a mão e fugisses comigo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

frustração

Uma vez tive uma ideia que me pareceu genial - apontei-a no pc, naquela de "isto dava um bom livro", e nunca se sabe se um dia não me apetecia mesmo escrevê-lo.

O pc foi formatado e a ideia foi com o caralho - por mais que tente, não me lembro da história. Okay. Acho que vale mesmo mais ir lavar sanitas.

domingo, 30 de novembro de 2014

carta a quem nada digo

Vivia na ilusão de que o mais difícil era passar semanas sem notícias tuas, mas esta é só a prova mais pura da minha inocência - o mais difícil é, de longe, saber de ti todos os dias. Especialmente agora, num desses momentos em que a vida te pregou uma partida e estás a sofrer, talvez mais do que nunca. E eu lamento tanto, mas tanto, não poder estar ao pé de ti, que tenho feito os possíveis para manter a minha presença certa, ainda que silenciosa e anónima, na tua vida, de forma a ir ajudando sem que nunca chegues a saber que era eu que estava por trás do que te tem chegado a casa, como um pequeno mimo que se dá aos que mais gostamos. Mas isto está a dar cabo de mim.

Se me pudesses ouvir agora, dir-te-ia que não ligasses a quem te diz que tens de seguir em frente. Tens, mas também tens todo o direito de fazer o teu luto como bem te apetecer, até estares preparado para voltar ao mundo dos vivos. Precisas de te dar a esse luxo até aprenderes a viver com essa dor miudínha que nunca mais te vai abandonar e vai aproveitar para se instalar sempre que estiveres distraído - é por isso que precisas desta pausa e não deixes que te proíbam de a fazer. Mas tu não podes nem queres ouvir-me, e estás no teu direito.

Não sou um número no teu telemóvel a juntar-se às chamadas que não atendeste nem às mensagens que não leste - como disse, mantive-me quieta, silenciosa, distante, apesar de me estar a magoar saber de ti a toda a hora, saber o que te aconteceu, saber como aconteceu. Saber do teu estado. Fui sofrendo contigo,e por ti, como se esta dor também me pertencesse. Como se as nossas vidas ainda se cruzassem em vez de eu estar a assistir ao desenrolar da tua vida num lugar privilegiado da plateia mas, ainda assim, num lugar que tu nunca vês.

E com isto acrescem-se as saudades e a dúvida - se eu tivesse dito que sim poderia, neste momento, estar sentada ao teu lado? Provavelmente sim, provavelmente não. Talvez isto não seja mais do que aquela velha mania, intrínseca às mulheres, de tentarem convencer-se de que tinham o poder de mudar tudo. Mas talvez eu nunca tenha podido nada, sei lá.

Sei que isto está a matar-me aos bocadinhos, meu amor, e eu sou demasiado nova para morrer por quem nem se lembra de mim. Também sei que despedidas comigo nunca funcionam porque eu acabo sempre por encontrar um qualquer motivo para voltar atrás - mas hoje estou particularmente cansada de me manter nesta posição ingrata enquanto, provavelmente, outras estarão na ribalta ao teu lado, mais indiferentes, menos apaixonadas. Menos entregues a ti e ao teu mundo mas, mesmo assim, mais perto. E eu que demorei meses para entender a dimensão do que sentia, fico aqui, condenada a não te ser mais nada do que a memória distante de algo que podia ter resultado mas eu fiz com que se perdesse. Mas já é tarde para o lamentar e mais tarde ainda para esperar ainda te fazer falta - por mais que me custe admiti-lo, estás melhor sem mim. E hoje não me apetece ser triste. Amanhã talvez eu volte a investir em mais uma tentativa falhada como um barco que, levado pela maré, continua a embater nas rochas até se destruir de vez, mas hoje eu quero parar e quero aprender a ser feliz longe de ti. Hoje não.

domingo, 26 de outubro de 2014

excertos desse nada

Sempre que começava a chover, dava por mim a perguntar-me como é que podia existir tanta gente no mundo que jurasse a pés juntos amar de morte o cheiro das primeiras chuvas. Para mim, as primeiras eram sempre iguais a todas as outras: tristes. Uma forma cruel de a natureza nos mostrar que, por muito más que as coisas estejam, podem sempre piorar. Sempre.

Estava a pensar sobre isto enquanto observava as investidas da chuva contra a minha janela, quando ela me ligou. Diz que ia passar perto de minha casa e queria marcar um café - sustive a respiração. Eu conseguia lidar com isto, não conseguia? Creio que sim. Aceitei, com um nó na garganta; não estava certo de estar preparado para a ter à minha frente novamente, mas já não havia volta a dar.

O que havia de mais extraordinário nela é que ela parecia sempre fazer parte de um quadro, onde quer que estivesse. Parecia que, mesmo quando não desempenhava um papel ativo, nada seria igual se ela não estivesse ali - de pé, de costas para mim no centro do jardim, o vestido preto, os cabelos molhados caídos nos ombros, as pombas à volta dela mas, sobretudo, o facto de ela não fazer ideia de que todos os olhares se voltavam na sua direção. Ela pareceu-me tão perfeita que acabei por ficar a contempá-la, incapaz de dar mais um passo que fosse, com medo de estragar. Mas ela virou-se de repente.

Do que aconteceu a seguir, tenho poucas recordações, como sempre me acontece nos momentos mais importantes. Ela estava encharcada; apercebi-me disto enquanto a envolvia nos meus braços e lhe beijava a testa - estava a pensar que a pobre miúda devia ter sido apanhada pela chuvada quando me apercebi do inchaço nos olhos dela e percebi que ela tinha estado a chorar, provavelmente aproveitando o facto de ninguém se dar ao trabalho de distinguir lágrimas de chuva.

Queria ter-lhe perguntado o que tinha acontecido, mas não fui capaz - sabia que ela me falaria dele, do outro, e eu não estava preparado para isso. Eu sabia que era o tipo bom e que ela nunca escolheria o tipo bom - mania das mulheres, só querem o que lhes faz mal. Eu nunca seria o tal. Limitei-me a abraçá-la mais uma vez, como tantas vezes antes, e a descobrir que a água tinha intensificado o cheiro do shampô de chocolate no cabelo dela. Comecei a chorar também. Não fui capaz de entender porquê na altura, mas não consegui conter as lágrimas a cairem-me duas a duas, perante o olhar perplexo dela. 

Não a voltei a ver. A meu pedido, ela deixou de me ligar - a meu pedido uma ova. Eu esperava que ela acabasse por entender, que me procurasse a meio de uma noite qualquer, Que gostasse de mim como eu gostava dela. Mas isso nunca aconteceu, e os anos foram passando - ainda me questiono se ela algum dia entendeu porque é que eu chorei naquela tarde, se ela soube o quanto eu a amei. E amei mesmo, juro por deus, eu não fazia ideia do que isso era, mas ela tornou-se na minha definição privada de amor - quando, anos mais tarde, me perguntaram o que era o amor para mim, eu sorri e respondi que era a chuva. Amor é chuva no cabelo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

excertos desse nada

Estava a ter um dia absolutamente banal, desses em que parece que deus tirou umas férias e se foi ocupar de outro mundo que não o nosso, porque parecia que este estava mergulhado nesse marasmo infernal em que nada acontece. Nem bom nem mau; limitamo-nos a respirar e a andar para a frente porque nos dizem os olhos isentos de alma que é esse o caminho certo. Estava numa reunião sem importância quando, ainda antes de a ter visto, soube que ela tinha acabado de entrar na sala.

Era impossível não a reconhecer pelos passos - sem querer, sorri -, ela continuava igual a ela própria: um autêntico furacão. Mal passou a porta, já tinha derrubado um placard que caiu em cima de um daqueles tipos de quem ninguém gosta. Corou, incapaz de perceber que nunca ninguém naquela sala a conseguiria culpar por o que quer que fosse ou a iria condenar por ser um desastre com pernas. Acho que, lá no fundo, todos estávamos apaixonados por aquela figura da irreverência e do desconcerto. Uns mais do que outros. Eu mais do que eles.

Quando os nossos olhares se cruzaram, senti o meu coração a martelar-me nas costelas e a fazer-me pensar que estava a agir como um puto idiota; até que idade é que nos é permitido ficar com as mãos a transpirar só de olhar para uma miúda? Mas ela pareceu nem reparar na minha aflição, na minha ânsia por a tirar dali e recomeçar. Que disparate - claro que não reparou; eu expulsei-a da minha vida. Conhecia demasiado bem os pontos fracos dela e foi-me muito fácil fazê-la odiar-me; ainda hoje me pergunto porquê. 

Creio que estava assustado, creio que tomei consciência de que não ia conseguir lidar com ela. Creio que tive medo - mas eu creio em muita coisa que não existe. É este o mal das crenças: servem, sobretudo, para nos apaziguar mesmo quando estamos conscientes de que estamos só a mentir a nós próprios. O meu problema é que não estava preparado para atracar num porto. Muito menos num porto seguro como ela - queria andar à deriva. Queria fazer o que me apetecesse antes de me entregar a alguém que tivesse o poder de me dominar assim. Tive medo, confesso, de me perder. E fugi-lhe por isso - mas perdi-me muito mais.

Dei por mim a suster a respiração; durante um segundo louco, ocorreu-me que ela poderia agredir-me ali, em frente a toda a gente, por eu ser um anormal. E acho que desejei que ela o fizesse - queria que ela me desse com uma cadeira em cima. Queria que ela gritasse comigo. Queria que ela mostrasse ao mundo como eu a desapontei - mas queria que ela me ouvisse. Que ela me perdoasse. Que resultasse. Entretanto, percebi que ela nunca o faria - por muita raiva com que ela tivesse ficado inicialmente, seria incapaz de me querer mal, tal miúda. Nunca me magoaria de propósito como eu fiz com ela - mal ela sabia que, quando começou a falar, a voz dela me atingiu como mil flechas. Mal ela sabe que nada magoa mais do que a doçura. Mal ela sabe que eu me arrependo todos os dias por a ter deixado ir.