domingo, 26 de outubro de 2014

excertos desse nada

Sempre que começava a chover, dava por mim a perguntar-me como é que podia existir tanta gente no mundo que jurasse a pés juntos amar de morte o cheiro das primeiras chuvas. Para mim, as primeiras eram sempre iguais a todas as outras: tristes. Uma forma cruel de a natureza nos mostrar que, por muito más que as coisas estejam, podem sempre piorar. Sempre.

Estava a pensar sobre isto enquanto observava as investidas da chuva contra a minha janela, quando ela me ligou. Diz que ia passar perto de minha casa e queria marcar um café - sustive a respiração. Eu conseguia lidar com isto, não conseguia? Creio que sim. Aceitei, com um nó na garganta; não estava certo de estar preparado para a ter à minha frente novamente, mas já não havia volta a dar.

O que havia de mais extraordinário nela é que ela parecia sempre fazer parte de um quadro, onde quer que estivesse. Parecia que, mesmo quando não desempenhava um papel ativo, nada seria igual se ela não estivesse ali - de pé, de costas para mim no centro do jardim, o vestido preto, os cabelos molhados caídos nos ombros, as pombas à volta dela mas, sobretudo, o facto de ela não fazer ideia de que todos os olhares se voltavam na sua direção. Ela pareceu-me tão perfeita que acabei por ficar a contempá-la, incapaz de dar mais um passo que fosse, com medo de estragar. Mas ela virou-se de repente.

Do que aconteceu a seguir, tenho poucas recordações, como sempre me acontece nos momentos mais importantes. Ela estava encharcada; apercebi-me disto enquanto a envolvia nos meus braços e lhe beijava a testa - estava a pensar que a pobre miúda devia ter sido apanhada pela chuvada quando me apercebi do inchaço nos olhos dela e percebi que ela tinha estado a chorar, provavelmente aproveitando o facto de ninguém se dar ao trabalho de distinguir lágrimas de chuva.

Queria ter-lhe perguntado o que tinha acontecido, mas não fui capaz - sabia que ela me falaria dele, do outro, e eu não estava preparado para isso. Eu sabia que era o tipo bom e que ela nunca escolheria o tipo bom - mania das mulheres, só querem o que lhes faz mal. Eu nunca seria o tal. Limitei-me a abraçá-la mais uma vez, como tantas vezes antes, e a descobrir que a água tinha intensificado o cheiro do shampô de chocolate no cabelo dela. Comecei a chorar também. Não fui capaz de entender porquê na altura, mas não consegui conter as lágrimas a cairem-me duas a duas, perante o olhar perplexo dela. 

Não a voltei a ver. A meu pedido, ela deixou de me ligar - a meu pedido uma ova. Eu esperava que ela acabasse por entender, que me procurasse a meio de uma noite qualquer, Que gostasse de mim como eu gostava dela. Mas isso nunca aconteceu, e os anos foram passando - ainda me questiono se ela algum dia entendeu porque é que eu chorei naquela tarde, se ela soube o quanto eu a amei. E amei mesmo, juro por deus, eu não fazia ideia do que isso era, mas ela tornou-se na minha definição privada de amor - quando, anos mais tarde, me perguntaram o que era o amor para mim, eu sorri e respondi que era a chuva. Amor é chuva no cabelo.

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