O cancro é o papão da gente grande - e, depois de ele já nos ter roubado alguém importante, queremos ter a certeza de que não o deixamos ganhar o jogo outra vez sem espinhas. Queremos dar-lhe luta, mostrar que ele não pode simplesmente levar-nos outra pessoa às primeiras, sem ter de enfrentar a resistência inabalável do amor que temos a quem ele nos quer roubar. Cancro filho da puta - vais ter de sofrer muito até me levares mais esta. Tumbas!
Quando descobrimos que alguém de quem gostamos muito tem cancro, o relógio pára. Deixa de haver tempo e passa a haver segundos para aproveitar, um a um, uma vida que está em vias de se consumir. O relógio pára e o mundo estremece - não, não, não, outra vez não! É o medo. A eminência. O sufoco. Creio que, qualquer pessoa que já tenha visto alguém de quem gosta muito a ser consumida pela doença, conseguirá compreender do que falo. É um dia de cada vez - nunca se sabe o que se segue. E então, aproveita-se cada segundo como sempre se devia ter aproveitado - só nos lembramos da efemeridade da vida quando lhe metem um prazo de validade. Quando se ligam todos os alertas e se começa a tratar a morte por tu.
Só me apercebi do quanto gostava da minha prima no dia em que me disseram que ela tinha cancro. E nunca mais a larguei; não queria cometer o erro que outrora cometi. Queria estar lá, sempre, até ao fim. Estive lá em cada consulta, em cada exame - ouvi o médico dizer que o quadro não era famoso; tumor maligno no fígado, já avançado. Só restava a dúvida se já se teria ou não espalhado. Exames, muitos exames, e o quadro continuava - só três meses depois é que se decidiram a fazer uma biópsia. Três meses. Três. Meses.
O tempo deixou de importar, dizia eu, mas há quase quatro meses que havia um nó no peito que teimava em desaparecer - quatro meses em que aprendi a mostrar o quanto gosto dela todos os dias. Quatro meses em que ela aprendeu a aproveitar a vida de uma forma que todos nós devíamos aprender antes de entrarmos em pânico por ela se poder acabar em breve. E foi então que, finalmente, chegou o resultado da biópsia que devia ter sido feita há já muito tempo, em vez de ser constantemente adiada - não há cancro para ninguém. Nunca houve.
Entre o choque por vivermos num país em que isto acontece e a gratidão por terem voltado a virar a ampulheta ao contrário, ficou-nos uma lição para a vida: a vontade de continuar a aproveitar cada dia como se fosse o último porque, de vez em quando, a vida troca-nos as voltas de repente. É uma segunda oportunidade, é uma vida renovada - mas é, sobretudo, a certeza de que, mesmo nos tempos mais difíceis, nunca se deve desistir.
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