terça-feira, 26 de maio de 2020

o covid resumido

Ao início, ninguém levou muito a sério: víamos os jornalistas ansiosos por notícias frescas, quase quase a acampar num aeroporto para garantir que assistiam à chegada do primeiro caso de coronavírus  a Portugal. Andavam tão desesperados que o povo ria e dizia que isto era como qualquer outra merda vinda da China e não iria durar nada.

Entretanto, a coisa começou a ficar feia. Espalhou-se a notícia de que estávamos a viver uma pandemia e ninguém sabia muito bem o que isso significava: uns, cagaram-se de medo e foram a correr comprar quantidades industriais de papel higiénico. Talvez acreditassem que, se se mascarassem de múmia, ficavam imunes. Outros foram abastecer-se de salsichas e atum para 32 anos, pelo que julgo que teremos muitas criancinhas a nascer depois disto que se alimentarão unicamente à base de arroz com sautchitchas até à vida adulta.

Fecharam os ginásios para podermos ficar todos gordos mais à vontade, e fecharam tudo o resto a seguir. Talvez não por esta ordem, que antes disto já estavam as criancinhas todas de volta a casa e os pais, que normalmente se queixavam do pouco tempo que tinham para ver as crias, a lamentar profundamente a decisão de não ter adiado a coisa um bocadinho para ir comprar preservativos. Paciência.

Depois, o caos: mandaram-nos ficar em casa e lidar com quem lá vivia a tempo inteiro, sem direito a fuga, sem legalizar o homicídio. Foi difícil para todos: uns divorciaram-se, outros fizeram filhos (os que vão comer arroz com sautchitchas uma boa parte da vida), e outros foram lidando como podiam com a situação - se deus nosso senhor - ou a pílula - quiser, estou no último grupo. Se assim não for, tenho de me ir abastecer de salsichas.

Nos primeiros tempos, as pessoas ficaram todas com medo de sair de casa e estavam tão gratos pelos que continuavam a trabalhar em hospitais e supermercados que começaram a ir bater palmas para a janela - os mosquitos que faleceram durante estes atos ainda estão por contabilizar, mas acho bem que entrem nas estatísticas da morte por covid-19, porque há que haver respeito. Fizeram pão, fizeram bolos, alguns consumiram álcool como que para comemorar as festas da aldeia, que certamente não existirão, e outros, como eu, não devem ter feito porra nenhuma porque a época é de stress agudo. Houve quem instalasse o tiktok - shame on me - para fazer companhia nas horas em que não há mais nada para matar o tempo, houve quem tivesse dedicado o tempo a construir teorias da conspiração.

As duas semanas iniciais foram-se prolongando e as pessoas foram-se esquecendo do #stayhome. A dada altura, o povo cansou-se de estar armado em herói de sofá e começou a ir para a rua, como se tudo isto não tivesse sido mais do que um sonho estranho e já nos pudéssemos lamber uns aos outros como antes. Pessoalmente, sou a favor de uma petição para que todo o contacto físico não estritamente necessário seja abolido para todo o sempre, que até nem desgosto tanto assim desta distância. Mas isto sou eu.

Inicialmente, o uso de máscara era opcional, depois passou a ser desnecessário, até porque temos poucas, e entretanto lá se começaram a fazer as de pano, reforçou-se o stock e passaram a ser obrigatórias. Estou com esperança de que haja um plot twist neste ponto e que entretanto possa voltar a ir às compras sem transpirar do buço como se tivesse acabado de correr 10 km.

Passámos do #stayhome ao #desconfinando, mas agora tudo de cara tapada e prontos para dar início a um assalto a qualquer momento. A máscara passou a ser parte do outfit e as pessoas conquistaram o direito a ser mal fodidas a tempo inteiro porque é mais fácil disfarçar o azedume. Em contrapartida, saíram a ganhar todos os que convivem com seres humanos que desconhecem a função de uma escova de dentes e vivem com uma camada de placa bateriana nos dentes, mais espessa do que a camada de gordura que me protege os abdominais. Agora pensem.

Para muitos, foi uma fase transformadora, em que alinharam os chakras e se tornaram melhores pessoas. Para outros, foi só uma ótima oportunidade para refletirem sobre as vidas merdosas que levavam, e para deixarem de conseguir dormir quando se aperceberam de que seriam obrigados a voltar para elas - nota-se que foi uma frase muito pessoal, não nota?

2020 só teve dois meses: janeiro, o mês mais longo desta vida para quem vê o dinheiro a lutar para chegar ao fim, e fevereiro, um mês curto e singelo, que serviu para nos animar antes das desgraças que março trazia no bolso. A partir daí, foi tudo cancelado, o tempo deixou de contar e, no fundo, ninguém sabe muito bem o que andou a fazer nos últimos dois meses e meio, como é que acabou com uma franja cortada em casa ou com o corpo cheio de pêlo a lembrar o chewbacca.

Algo me diz que a passagem de ano vai ser de arromba, com toda a gente junta  na rua a gritar e a bater tachos para enterrar de vez este ano miserável - e depois vamos todos para as urgências com covid e damos início à segunda vaga.

Não querendo desiludir ninguém... ainda só vamos a meio deste ano filho da puta. De nada.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

onde quer que esteja.

Custa-me crer que tenha vivido vinte vezes o vinte e cinco de maio sem fazer a menor ideia de que, um dia, esta data carregaria o peso eterno do maior golpe que a vida me deu - há precisamente quatro anos, estava de malas feitas para uns dias no sul de frança e para o reencontro que mais desejei com a minha terceira avó. Não fazia ideia de que, à última hora, teria de encontrar um espaço extra entre as minhas roupas para levar até ela o último fato que lhe vestiram. Quatro anos depois, ainda não consigo colocar em palavras o que senti por ela me ter sido roubada por um triz
Deixei-me atormentar pelos ses durante muito tempo: se o ano fosse comum e não bissexto, se tivesse viajado no dia anterior, se os médicos tivessem sido mais rápidos a fazer o diagnóstico. Se tudo isto, se tudo aquilo: talvez ainda nos tivéssemos reencontrado na manhã seguinte. Talvez eu tivesse sido capaz de me despedir, ainda que a ideia de nos despedirmos de alguém que não volta me pareça vã, quase absurda. Não há palavras que assentem nesse momento, não há nada que se possa fazer senão agarrar a mão com toda a força e esperar ser capaz de agarrar, muito mais do que o corpo, a alma. A vida.

Perguntei-me muitas vezes onde falhei, em que momentos poderia ter ficado mais cinco minutos, em que dias da semana poderia ter ligado só para ouvir a voz dela, e se valeu mesmo a pena ficar amuada com algumas situações. Queria perceber o que perdi, o tempo que deixei passar assumindo que teria todo o tempo do mundo daí em diante, sem fazer a mais pequena ideia - ou sem aceitar - que a vida não é ilimitada. Hoje, dava tudo por mais uns minutos. Só mais uns minutos.

Começo a conseguir sorrir quando me lembro dela: quatro anos depois, já sou capaz de me lembrar de todas as vezes em que fugi de casa da minha avó para casa dela, em que atravessei a estrada, descalça, e me sentei nas escadas a falar sobre nada num tempo em que o tempo era o que menos importava. De quando lhe pintei as unhas dos pés e ela contou a toda a gente, como se fosse um grande acontecimento, e de todos os momentos em que rimos até chorar. Penso nos caracóis louros que lhe pintava em casa, e de quando a (des)penteava.

Não era santa: tinha um feitio terrível, ou não partilhássemos nós um sobrenome, e era um osso duro de roer. Gostava dela especialmente por isso: era o que era, e quem não gostava só tinha de se arredar. O problema é que era realmente difícil não gostar - por mais que fosse uma mulher de pêlo na venta, tinha um coração enorme.

Partilhávamos a obsessão pelo café: desde antes de eu ter idade para o beber, já me sentava com ela no canto da mesa a conversar ,durante horas, com uma água suja e bem doce. Hoje bebo-o forte, amargo e parte-me o coração que ela não tenha vivido o suficiente para me ver voar do ninho e eu lhe poder apresentar a minha casa.

Então, roubei-lhe uma chávena e foi das primeiras coisas que trouxe quando me mudei: nunca vai subir estas escadas, nunca se vai sentar à mesa, mas está presente em todos os dias da minha vida.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

os machos e as virgens ofendidas

Há uns meses, numa entrevista de emprego, a rapariga perguntou-me se eu me achava preparada para trabalhar no meio de homens ligados à construção civil. Ri-me, e respondi que, se leu o meu currículo, deve ter percebido que venho do meio dos camionistas, e que por acaso esse foi o trabalho de que mais gostei. Espantem-se só: fui tão mal tratada, tão desrespeitada que, quase um ano e meio depois, ainda mantenho contacto com alguns deles. 

É importante defender as mulheres, é importante lutar pelo respeito, mas creio que o limite será quando se começam a desenvolver preconceitos sobre os homens, porque são pedreiros, porque são camionistas, porque têm um pêndulo entre as pernas. Calma lá que nós não somos todas santas, e eles não são todos cabrões.

Não sei se afinal é por ser mais sortuda do que sou capaz de entender, ou mais inocente, mas a verdade é que nunca me senti diminuída ou intimidada por ser mulher - chocante, eu sei. Nunca deixei de vestir uma saia ou um vestido por saber que iria frequentar um sítio com homens, nunca mudei uma vírgula da minha vida como que para me esconder desses seres mauzões portadores de pila. Imaginem só que nem tenho quaisquer problemas em levar o meu carro a oficinas ou à inspeção, e nunca pedi a um macho que o fizesse por mim por eu ser uma donzela indefesa. Porque... bem, porque não sou. Nunca me senti como tal.

Ontem, levei o meu carro à oficina.
Por ter alguma urgência na resolução de um problema elétrico e o eletricista da oficina a que recorro sempre - por ter mecânicos simpáticos, que entendem que eu percebo tanto daquilo quanto de mandarim mas explicam as coisas sem parecer que estão a falar com uma atrasada mental - acabei por ter de recorrer a outra.

Lembrei-me de uma onde, há uns anos, tive uma entrevista de emprego para a vaga de rececionista e o dono chamou-me barbie: suficientemente perto de casa para que me pudesse deslocar a pé, se tivesse de lá deixar o meu rico coche, não precisei de pensar duas vezes e fui até lá, ainda que a achar que, pela localização da dita, talvez tivesse de começar a decidir que órgãos estaria disposta a vender para pagar o arranjo.

Depressa percebi que o eletricista era, nem mais nem menos, o senhor que, no dia da entrevista, disse que eu não poderia ser contratada porque as coisas lindas acabavam com ele (têm o link para esse post ali em cima). 

Expliquei-lhe que um dos problemas era o botão dos quatro piscas que, pouco antes de toda esta situação, lembrou-se de avariar do nada: num dia igual aos outros todos, a minha pobre viatura, abandonada à porta do sítio onde trabalho, achou que estava na hora de dar um pouco de cor àquela rua sombria e ligou os quatro piscas, a meio da manhã, como que a convidar toda a gente para uma festa silenciosa. Anda, desde então, encravado com um gancho do cabelo, só numa de não passar a vida a piscar por todos os lados.

Chegou à conclusão de que se carregasse com um bocadinho mais de força, ele acabava por prender e não valia muito a pena estar a investir em peças novas nesta fase, principalmente por já ser um carro maior de idade.

Os outros problemas tinham imperativamente de ser resolvidos, ou o meu velhinho não iria passar na inspeção: deixei-o lá, e fui à minha vida.

Vi o tempo a passar: mais de duas horas depois, eu já pensava que talvez nem fosse má ideia tentar hipotecar os pêlos do buço, quando o senhor me disse que já estava pronto.

Explicou-me que a avaria se devia ao desgaste, mas que esta não é uma boa altura para andar a gastar demasiado dinheiro em peças novas e então tinha arranjado as velhas. Além disso, as meninas bonitas merecem uma atenção no preço, e então só me cobrou uma hora e meia de mão de obra em vez das mais duas em que esteve, realmente, a trabalhar.

Poupou-me bastante dinheiro: ajudou-me, numa altura em que também não me dá muito jeito investir muito, principalmente por o carro ser velho. Podia ter-me vendido peças novas, podia ter-me cobrado bastante mais do que apenas a mão de obra, e não o fez. 

Fez-me sentido escrever sobre isto porque vivemos numa altura em que os homens são todos uma cambada de filhos da puta e qualquer comentário relativo a uma mulher já merece ser punido: aposto que o comentário das meninas bonitas já faria umas quantas capazes gritarem assédio: o senhor ainda acrescentou, em tom de brincadeira, que sempre quis estar na receção, só para ter uma desculpa para pedir o número a todas as meninas lindas que por lá passam, mas nem por isso me senti minimamente assediada por um homem que tem idade para ser meu avô. 

Não me ofendeu. Não me tocou. Não me fez sentir minimamente desconfortável porque percebi que era só uma tentativa de me elogiar e ser engraçado ao mesmo tempo. Senti-me, isso sim, grata pela ajuda numa altura em que ela é bastante bem vinda, e com alguma fé na humanidade restaurada pela consciência de que ele escolheu poupar-me dinheiro, em vez de se limitar a querer vender.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

o dia em que atirei a toalha ao chão

Este período tem sido bom para toda a gente: não houve uma alma que não se tivesse redescoberto, que, por ser proibido encontrar outras pessoas, não se tenha reencontrado. Agora toda a gente encontrou a chave para a felicidade e o sentido para a vida. Até já sabem fazer pão! Ou então não, mas parece mal dizer que nos sentimos miseráveis.

Falhei.
Mais de dois meses depois, não sei mais do que sabia antes. Minto: intensificou alguns sabores amargos e envolveu-me num medo ridículo de ter de me voltar a entregar a eles. Porque vou. A vida alinhou-se para toda a gente, mas não me deixou escolha: foi hoje que atirei a toalha para o chão e me dei por vencida. Tenho todo o tempo do mundo e mesmo assim sinto-me exausta porque há uma ansiedade que me consome e não me deixa dormir, neste frenesim de uma existência em contra relógio e da pressa de ser mais feliz amanhã. Não consigo mais.

Hoje resolvi deixar de procurar, e deixar de viver com o telemóvel na mão à espera de que ele toque. Pela minha sanidade mental, desisto agora para me permitir a perdê-la dentro de pouco mais de uma semana.

Já não há nada a fazer.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

sexta feira

E nenhum milagre aconteceu.
Não senti a falta deste viver com o telemóvel como uma extensão do braço, numa espera desesperada por respostas que nunca chegam. Não senti a falta de sentir a esperança a dissolver-se nas horas e a receber cada anoitecer com um sentimento de falha, de perda. Todos os dias.

Estou numa situação difícil de explicar, num limbo esquisito: poderei ou não ficar desempregada dentro de duas semanas, e se há uma parte de mim que está aterrorizada com a ideia de voltar ao desemprego, a outra está mais aterrorizada ainda com a ideia de renovar um contrato que nunca desejei em primeiro lugar. 

Fala-se muito das saudades, da falta que nos fazem as pessoas e nos reencontros mais esperados - ninguém fala do oposto. Da falta que não nos fez quem nos causava um mal estar constante, e da vontade de adiar esse reencontro eternamente. É impossível que eu seja a única a sentir isto. É impossível que não exista uma única alma neste mundo que sinta o que eu sinto, este nó no peito porque o período de afastamento torna insuportável sequer imaginar a reaproximação. Esse dia em que terei de sorrir, acenar e fazer de conta de que estou feliz por voltar.

Don't get me wrong: a quarentena não tem sido fácil para mim, tal como para a maior parte das pessoas. Não consegui encará-la como umas férias, ou uma pausa, porque só me veio desequilibrar: passei de muito ativa a quase sedentária, perdi bastante peso por falta de apetite e uma alimentação degradante, fiquei mais instável do que nunca ao nível emocional e, especialmente desde o final do mês passado, tenho-me sentido permanentemente nervosa porque não sei o que será de mim. Ainda assim, mesmo que o panorama seja miserável, a ideia de ter de voltar ao trabalho sem um backup plan para o fim do meu contrato, consegue fazer-me sentir muito pior. Eu já quereria sair, mesmo que não tivesse acontecido tudo isto - mas agora quero-o mais do que nunca porque, dois meses depois, não consigo imaginar-me a voltar para um sítio onde me arrastava até ser fim de semana outra vez.

Neste momento, não sei nada de mim. 
É bastante provável - ou quase certo - que estarei de volta na próxima segunda feira. Sem plano de fuga, sem cartas na manga, sem plano b. Mais ou menos obrigada a ficar. Mais ou menos condenada a continuar a arrastar-me por aí - e, acreditem, não há quarentena que supere esta sensação.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Meu amor,

antes de ti, perguntei-me muitas vezes qual seria o passo a seguir às borboletas, e o que se seguiria quando o coração aprendesse a desacelerar e não estivesse sempre a tentar escapar-me do peito por um mero encontro acidental. Na altura, estava convencida de que vivia permanentemente apaixonada, numa fase tão negra da minha vida que um par de olhos fixos nos meus já se assemelhava quanto baste à luz ao fundo do túnel para onde eu queria correr para me salvar. Mesmo que fosse sem querer. Mesmo que, quem me olhasse, nem fosse realmente capaz de me ver: este, era o ápice da atenção de que me julgava merecedora. Nunca esperei mais do que isso, e portanto também não acreditava na vida depois da paixão. Achei que tudo perderia a piada no dia em que soubéssemos o outro de cor de tal forma que já se dispensassem as palavras para saber exatamente o que não foi dito.

Depois, tu. 
Repara como separo sempre a minha vida num antes e depois de ti: é como se tivesse renascido, como se o mundo se tivesse transformado e já nada fosse como eu tinha imaginado antes. Mudou para melhor. Transformou-se em tudo aquilo que não julguei existir.

Ensinaste-me o amor nu, aquela versão que já não disfarça, já não finge não querer, e o prazer louco de poder ser exatamente quem eu sou, sem quaisquer filtros, sem quaisquer barreiras, em todos os dias da semana. Em todas as horas do dia.

Fizeste-me perceber que também se ama pela manhã, mesmo com hálito de cão e cabelo desgrenhado - por estes dias, desgrenhado já é o estado normal - e que se ama ainda mais de pijama, ou com as calças de fato treino mais velhas, do que quando nos vestíamos para nos encontramos por aí. Há uma beleza selvagem na partilha por inteiro, na queda dos tabus, na abolição da vergonha. E, afinal, o amor não morre quando a rotina se instala e é necessário falar das contas para pagar, ou do aumento dos combustíveis, ou de absolutamente nada. 

Achei que dois anos e meio de relação à distância me teriam deixado imune às saudades nas tuas ausências temporárias, mas enganei-me: de cada vez que te vais embora, mesmo que seja só por uns dias, posso jurar que não me dói menos do que em cada domingo que fiquei a ver-te ir, à porta de casa, de lágrimas nos olhos e saudades já reinstaladas com sucesso. Talvez chegue a doer um bocadinho mais, porque já não estou habituada a adormecer sem te ter ao meu lado, ou a não te ter ao lado, na varanda, enquanto reparamos em coisas tão banais quanto a roupa nos estendais alheios ou os carros permanentemente estacionados nos mesmos lugares. Esta casa parece vazia nos dias em que não estás.

Habituei-me muito bem a partilhar a minha vida contigo, mesmo que não seja todos os dias fácil. Mesmo que não sejamos capazes de nos entender à primeira em todos os momentos, mesmo que tenhamos de encerrar batalhas num abraço. 

(Mais de) três anos depois, às vezes ainda não acredito na sorte que tive: olho para ti e derreto-me no teu sorriso, quase como se fosses um sonho inconcretizável, demasiado bom para ser real. Mesmo depois de todo este tempo, mesmo depois de não haver um milímetro de nós por revelar ao outro, há dias em que me perco no teu abraço como se ainda agora estivéssemos a começar e eu ainda não te soubesse de cor. Como se cada abraço não passasse de um passinho pequenino rumo a um amanhã que logo se vê: e é nesses momentos que tenho a certeza de que ainda me apaixono por ti quase todos os dias.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

ESTOU A RECRUTAR

Um santinho simpático para um milagre laboral.
(desculpem lá a desilusão, mas é para verem o que sinto quando leio anúncios de emprego para teletrabalho e afinal é só para vender sabonetes da avon)

Esta foi a forma mais leve que encontrei para explicar ao mundo o verdadeiro estado de calamidade, atualmente em vigor dentro de mim, que não foi decretado pelo governo mas está a ter bastante mais impacto do que o outro, o verdadeiro, aquele que deveria abranger toda a gente e relembrar que ainda estamos mais ou menos fodidos, embora já não pareça.

Tenho duas semanas para encontrar um novo emprego.
Duas semanas para fazer o que não consegui fazer em meses, e que tenho ainda menos esperança de conseguir agora, numa fase em que está tudo virado do avesso e a fé de conseguir um milagre escasseia a cada hora que passa sem qualquer resposta. Dizer-vos que estou a entrar em desespero não chega sequer para levantar o véu do que têm sido os últimos dias - ou semanas. Sinto um friozinho na barriga permanente, num desassossego constante que me acelera o coração e não me deixa respirar.

No final do mês, o meu contrato acaba.
Sempre imaginei que já teria conseguido encontrar alguma alternativa por esta altura. Que poderia entregar a farda, agradecer pelo ano de aprendizagem e sair, pela porta da frente, sem olhar para trás: não lamento, nunca lamentei, nada do que levo na bagagem, mas também nunca fiz questão de prolongar a estadia num lugar onde, claramente, nunca fui muito feliz. 

Achei que tinha tempo, que a vida se haveria de compor. 
Talvez tivesse tido, se não fosse tudo isto, se o mercado de trabalho não estivesse nas ruas da amargura e a concorrência tivesse aumentado drasticamente. Talvez tivesse sido possível, mas não foi.

Continuo em casa: ninguém fez questão de me avisar que afinal a clínica ainda não estava pronta para ter todos os funcionários a trabalhar e o meu lay off iria ser prolongado por mais um mês. Não posso, definitivamente, queixar-me senão de mim mesma, ou da pouca sorte ou das fracas escolhas, e de ter falhado redondamente em encontrar uma saída a tempo - tempo esse que parece não faltar e, ao mesmo tempo, nunca ser suficiente. Sinto-me a viver em contra relógio, numa batalha ingrata contra o passar das horas sem que mais nada possa fazer.

Resta-me respirar fundo, e esperar.
Esperar que ainda haja um plot twist na minha vida, que ainda bata certo no final.
Esperar que corra tudo bem.

domingo, 3 de maio de 2020

sangue, dor e sofrimento - ou um título para chamar a atenção

Ainda me lembro da primeira vez em que ouvi falar dos copos menstruais e, não vou mentir, a minha primeira reação foi qualquer coisa tipo isto:


Uma pessoa cresce a ouvir histórias de terror sobre pessoas que vão parar ao hospital com garrafas introduzidas em partes do corpo que habitualmente não transformamos em garrafeiras, e de repente estavam a dizer-me que enfiar lá um copo era normal. 

Até há coisa de, sei lá, um ano e meio, nunca mais pensei sobre isso: entretanto, devido a uma série de problemas que me fizeram querer afastar das partes toda e qualquer coisa que pudesse irritar a área, voltei a pesquisar sobre o copo. Já tinha crescido um bocadinho, felizmente, e percebi que não era assim tão estranho quanto isso.

Pesquisei muito sobre o assunto - mas assim MUITOOO mesmo, porque esta alma sovina não iria gastar 25€ para uma borrachinha de introduzir no pipi sem ouvir mil e quinhentas pessoas a falar sobre o assunto - e é por isso que estou a escrever este post com a minha opinião absolutamente irrelevante, para o caso de alguém também andar na dúvida.

Acabei por me decidir e fui a uma wells para comprar o meluna, aquele que me parecia o melhor. É de referir que existem tamanhos diferentes, dependendo do corpo de cada mulher, e é uma merda porque... bem, ninguém sabe propriamente quanto é que veste de vagina, não é? 

A rapariga, que claramente nunca tinha usado um, aconselhou-me um S; não a condeno, vá! Com esta cara que mais parece uma máscara de carnaval, entendo que a moça tenha partido do princípio de que seria uma eterna virgem. Portanto, deu merda: funcionou nos primeiros tempos, numa fase em que me estava ainda a adaptar (ou melhor, na altura eu achava que as pequenas fugas eram normais por não estar acostumada), mas depois percebi que era mesmo demasiado pequeno para mim. E não, não há nada de errado aqui: o S da meluna foi pensado para miúdas virgens, e o tamanho "normal" é o M, mas a miúda que me atendeu ficou assustada com a diferença de tamanhos e achou que teria de ser o mais pequeno.

Com isto, uns dois meses depois de ter gasto 25€ desta vida (ou perto, vá), fui a correr para uma farmácia para comprar outro. Não me lembro ao certo da marca (easycup?), mas foi ligeiramente mais barato, e nesta já tinha mesmo de ser o S visto o M ser para mulheres que já tenham passado por um parto vaginal. Again, duvido que vos interesse particularmente o tamanho do meu copo, mas é só para perceberem que é preciso ter atenção na hora de comprar e que varia de marca para marca.

E depois, Cinderela?
Olhem, depois apeteceu-me esbofetear aquela catraia que, há uns anos, gozou com a existência de um copo para aparar as beiras do útero!

Acreditem quando vos digo que foi o melhor upgrade que fiz na minha vida: duvido que neste momento já tenha recuperado do investimento (por ter comprado dois, gastei cerca de 45€ no total), mas é um descanso. Principalmente quem, como eu, tiver uma profissão em que nem sempre é fácil ir à casa de banho para trocar um tampão, vai perceber que o céu existe quando lhe bastar preocupar-se com a coisa duas vezes ao dia.

O copo é feito de silicone cirúrgico, e existem várias dobras possíveis para o fazer caber. Uma vez lá dentro, ele abre, cria vácuo e a magia acontece. Agora, se forem daquelas moças que têm algum receio de tocar em si mesmas, talvez não seja a melhor ideia: é preciso passar o dedo à volta para se certificarem de que o copo abriu. Relembro que é o vosso corpo e não há nada de nojento nisto, desde que tenham as mãos lavadas.

À semelhança dos tampões, não se sente absolutamente nada, desde que esteja bem colocado. Uma vez lá dentro, podem ser felizes durante 12 horas sem medo de morrer de síndrome do choque tóxico. Pessoalmente, nunca conheci alguém a quem tivesse acontecido, mas nunca fiando.

Existem imensos vídeos no youtube a mostrar as dobras possíveis, e toda uma série de outras questões que também vêm nas instruções do copo. Neste momento, já uso há um ano e não me consigo imaginar a usar qualquer outra coisa. Não faço ideia se alguma de vocês desse lado estará interessada ou minimamente recetiva a experimentar, mas acreditem que eu acho que mudou a minha vida para melhor e não lamento um cêntimo gasto nisto - e isto, minhas caras, significa muito vindo de mim porque eu odeio gastar dinheiro.

Se estiverem na dúvida, experimentem. Se não estiverem ainda na dúvida, aconselho-vos a a ficar porque vale muito a pena. E, no fim de tudo, já têm um copo para brindar* ao quão lindas e fantásticas são as fêmeas por sangrarem cinco dias e continuarem de pé. Éxétegue girl power.

(*não recomendo, mas se o fizerem enviem um vídeo.)