domingo, 27 de setembro de 2015

excertos desse nada

Nunca nos encontrávamos a horas certas, mas ela esperava sempre por mim - sentava-se no chão, de pernas penduradas na borda do rio, virada para o cais que jurava a pés juntos ser o seu sítio preferido mas que eu sempre soube que não era mais do que uma metáfora; queria que eu atracasse de vez. Queria ser o meu porto seguro. E era-o, mas não o sabia.

Lembro-me sempre de a encontrar quase sempre a escrever e com o ar descontraído de quem não se esforçava minimamente para ser tão maravilhosa quanto era; sê-lo-ia na mesma se não se esforçasse, mas nunca o descobriu. E, quando eu chegava, tinha de ficar uns momentos a observá-la de longe, o cabelo caído nas costas em forma de V, uma perna a balouçar levemente enquanto a minha menina apoiava o caderno no outro joelho e escrevia vigorosamente o que lhe ia na alma; nunca me deixava ver, mas o rosto dela enquanto escrevia era já por si só um poema que eu não me importava de ler eternamente. Mas, mais uma vez, nunca lho disse.

Um dia ofereci-lhe um caderno e uma caneta com o nome dela escrito. Queria que ela o visse como um gesto romântico, como uma daquelas quase-provas-de-amor silenciosas que oferecemos só para mostrar ao outro o quanto nos apaixona, mas só consegui comprar uma guerra. «Em vez de vires a horas, compras-me isto para me manteres entretida à espera. Sempre, sempre, à tua espera.». Armei-me em parvo, como sempre «Mas nunca chegámos a marcar uma hora!», e juro que achei que ela me ia bater, tal era a fusão da raiva e do desapontamento impressos no seu rosto. Virou-me as costas, mas no dia seguinte voltou para o cais, como sempre. E eu, como sempre, deixei-a à espera durante horas, embora soubesse que ela se sentava lá, religiosamente, assim que saía do trabalho. Estava mal habituado, é o que é.

Não me interpretem mal, não é que eu não gostasse dela! Se eu acreditasse num deus, certamente só ele saberia o quão louco e apaixonado eu estava por aquela miúda. Mas era um sacana descomprometido e tinha-a tão segura em mim que nem me preocupava em tentar prendê-la. Sabia-a minha, tal como achava que ela sabia que eu era dela - não há necessidade de verbalizar o que os corpos sabem de cor, pois não?

Ela não era fácil de aturar, mas eu ainda gostava mais dela por isso - estava sempre a resmungar e ficava melindrada pelas coisas mais sem sentido, ficava desconfiada e jurava a pés juntos que um dia desses se iria embora e eu nunca mais a veria, mas era sempre nesses momentos de vulnerabilidade, em que eu a apertava contra o meu peito e a sentia descontrair como se os meus braços fossem a sua casa, que eu a sentia mais minha. Que eu nos sentia mais nós.

Envergava quase sempre roupa escura que contrastava com a luminosidade do seu sorriso. Não digo que era louco por ela? Anos depois, ainda me causa arrepios lembrar-me da forma como me derretia sempre que a via sorrir. E o quanto me arrependo por tudo o que lhe fiz.

Amava-a tanto e nunca a soube amar em condições. Deixava andar, porque para a frente é que era o caminho e eu sabia que ela me acompanharia, mesmo que dois passos atrás, mesmo que às vezes tivesse de correr um bocadinho para não me perder de vista. A certeza de que ela lá estaria sempre dava-me o à vontade suficiente para pensar em nós como um casal de idosos que tinham passado a vida toda lado a lado; não importava a quantidade de coisas que eu metesse à frente dela, mesmo que demorasse uns dias, eu voltava. E ela estaria lá.

Demorei um bom tempo a perceber que ela me metia em primeiro lugar, e demorei mais tempo ainda a perceber que a iria perder se continuasse a deixá-la esperar que um dia as coisas mudassem.

Então, tomei uma atitude: um dia saí do trabalho a correr, fui a casa tomar banho e enchi-me do perfume que ela mais gostava. Depois, sentei-me no cais, no mesmo de sempre, ainda antes da hora de ela sair do trabalho; tinha decidido que era hora de lhe dizer que a amava e de lhe pedir desculpa por todas as vezes que a fiz duvidar de mim, por todas as vezes em que a fiz duvidar dela própria.

Mas as horas foram passando, e ela não apareceu. 
Nem nesse, nem nos dias seguintes. Semanas. Meses.
Todos os dias eu repetia o ritual, esperançoso, mas ela nunca vinha. Não atendia o telemóvel e a casa dela estava já ocupada por outra família.

Nunca mais a encontrei e agora, passados tantos anos, ainda me pesa o peito ao sentar-me aqui, no mesmo cais onde a perdi para sempre, no mesmo cais onde um dia ela se cansou de esperar por mim. Mas, embora doa, continuo a vir aqui: o último sítio onde vi o amor da minha vida.

sábado, 26 de setembro de 2015

contornando o «vai à volta que por aí não passas»

Lembro-me de dizer em pequena, na inocência inerente à infância, que queria trabalhar num hospital, nem que fosse a fazer limpeza. Pode parecer uma loucura dada a quantidade de vezes que me queixo de lá passar a vida, mas fascinava-me a ideia de um dia estar do lado de lá, de conhecer os bastidores, de saber como era não ser sempre a paciente.

Passei o secundário a babar por um curso de enfermagem (ou de jornalismo, mas isso são outras andanças) - mas chumbei a matemática. Oh hell, o drama, o horror, a tragédia: wild bicha fica mais uma vez impedida de concretizar o seu sonho. E agora? 

Podia ter feito qualquer coisa - podia ter continuado a tentar passar no exame até me crescerem barbas brancas (isto porque, entenda-se, eu acredito cada vez mais que velha nenhuma se escapa a uma barba que pingue sabedoria e azeite) ou procurado outras soluções porque, afinal, o que importa não é tanto o caminho mas sim a meta. E, apesar de, por vezes, meter o pé em falso e dizer que não quero mais do que isto, sei que sou demasiado teimosa para me conformar e que a meta continua lá, à espera de que eu lá chegue, quer vá a correr, a andar ou a rebolar. Hei de lá chegar.

Decidi-me por um curso que me desse equivalência ao 12º ano, oportunidade de entrar na faculdade e alguma experiência na área de que gosto. Se implicou voltar atrás? De certa forma, sim. Mas cada vez mais tenho a certeza de que também me deu a oportunidade de dar dois passos à frente naquela que continua a ser a profissão que eu almejo.

Neste momento, sou uma mera estagiária de auxiliar de saúde, mas cada dia que passa tenho mais a certeza de que é esta vida que eu quero para mim - não a de auxiliar, entenda-se. Este é um contentamento temporário que me serve menos à medida que a paixão pela enfermagem aumenta e as minhas oportunidades também. E o saber que sou boa naquilo que faço apazigua-me e dá-me mais força para não desistir assim tão facilmente; sei que ganhei uma destreza que me será favorável um dia destes e que já passei por aquele que achei que seria o meu teste de fogo: feridas feias não me impressionam mas não sabia como lidaria com a morte e acabei por me surpreender a mim mesma pela positiva. 

Isto para dizer que o importante é não ficar parada a meio do caminho a choramingar porque aquele que eu sabia que me levaria mais rápido está interdito - é ir na mesma. É ir à volta, é escolher outro. E não ter medo de errar, de voltar atrás, de dar dois saltos. Ou três.
Se nunca pararmos, um dia destes, estaremos no sítio certo.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

pequenos ódios

Tenho um ódio de estimação por aquele género de criaturas que se queixa de barriga cheia, que passa a vida a competir pelo tal pódio da infelicidade porque parece acreditar que só vive realmente se tiver a oportunidade de dizer num tom lastimoso que sofre, ora porque trabalha muito ora porque se diverte pouco, ora porque a vida é difícil ora porque não tem sorte.

Mas o que me faz trepar paredes é mesmo aquela massa que nunca tem dinheiro para nada e passa a vida a assumir-se pobrezinho e desgraçado mas que arranja sempre uns trocos para passear. Fico louca, que fico.
E reclamo, que reclamo.
Dá vontade de mandar foder, que dá.

domingo, 20 de setembro de 2015

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

pequenos génios

Tenho uma memória estupidamente boa para tudo o que não é importante mas, em contrapartida, tenho o dom de me esquecer de pins e padrões que me sirvam para desbloquear o telemóvel.

Digo mais: tem tempos remotos, toda a gente sabia o meu padrão de cor menos eu, mas também me tinha esquecido da minha resposta à pergunta de segurança, que por acaso era sobre o local do meu nascimento. Ou seja: ou anda tudo livre ou perco mais tempo a tentar lembrar-me de como desbloquear o telemóvel do que a fazer o que quer que seja nele.

E falo nisto hoje porquê? Porque sou um génio. Porque, por sentir necessidade de complementar a segurança do dito, instalei uma aplicação que me permite bloquear todos os sítios onde eu não quero que o olhito alheio ande a passear - e como é que funciona?

Por padrão.
Agora tenho, não um, mas dois padrões diferentes. Oremos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

este mundo continua a ser feito de batalhas

Eu enervo-me, barafusto, encho-me de raivinha dos dentes e tenho vontade de perguntar a meia dúzia de criaturas em que caixa de cereais é que encontraram a carta de condução, mas não adianta: as pessoas vão continuar a achar que aquele tracinho que é suposto servir de limite para parar antes da passadeira é um parque de estacionamento.

Seguem a lógica dos gatos: if it fits, i sit. E porque não? Para quê guardar 5 metros antes? Oh, oh, só o desperdício de espaço.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

quase-amor

Para evitar outra discussão, decidi pagar-me da mesma moeda - se ele pode demorar as horas que lhe apetecer a responder, porque é que eu não posso fazer o mesmo sem que ele comece logo a ponderar ligar para a polícia, para os bombeiros e para os hospitais da região só para ter a certeza de que eu ainda respiro?

E armei-me em má; fui forte, fui durona. Durante escassas horas; depois ele aproveitou a primeira oportunidade para me dizer que se tinha sentido mal, e eu sabia que aquilo era mais para me amansar do que outra coisa porque até já estava bem, mas demorei aproximadamente 2 segundos a ficar preocupada e esquecer o assunto, e toma lá mimo que eu quero é que estejas bem. 

De cada vez que penso no que isto de gostar de alguém fez àquele meu lado oh-amigo-eu-quero-mais-é-que-tu-te-fodas, apetece-me não gostar. Mas gosto na mesma, só por causa das tosses. E até sabe bem.

(o momento romântico acabou aqui e eu voltei a ser o ernesto, boa? boa.)

cinderella goes to the gym

E um dia destes sou expulsa - ora quase desmaio, ora quase vomito, enquanto continuo a sorrir e a prometer que ainda hei de voltar a entrar lá cheia de força e saúde para dar e vender, que isto de passar a vida nestas condições não é para mim.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

podíamos ter sido outra coisa qualquer

eu: podias sempre dizer que eu sou a tua deusa. buddha.
ele: buddhapeste.
 Mas acho que estamos mesmo a adorar ser parvos.
(e eu, claramente, a peste de serviço)

domingo, 6 de setembro de 2015

este mundo é feito de batalhas

E acho que nós, gajas deste planeta, devíamos investir num movimento que lembrasse os grandes génios que espalham casas de banho por aí que, só por acaso, convém que estas tenham um cesto para meter papéis aka pensos e tampões e toda a restante parafernália inerente às fêmeas.

Acreditem: nós precisamos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

tinha de falar sobre os sírios também

O que mais me surpreende na raça humana é a capacidade que tem de repetir as mesmas premissas durante anos e anos a fio e, mesmo assim, nunca chegar a ser capaz de compreender o seu verdadeiro significado. Uma ação gera uma reação: não podemos andar por aí a distribuir facadas e esperar beijos em troca. Não é bem assim que o mundo funciona.

Falo nisto hoje porque, mais uma vez, envolvi-me numa discussão sobre os sírios, mas poderia falar nisto em qualquer outro dia da minha vida e continuaria a fazer todo o sentido porque o preconceito nunca dorme nem tira férias. Está sempre aqui. Está sempre em todo o lado.

Há algumas - infelizmente, muitas - alminhas que estão a dar em loucas só de imaginar a vinda dos sírios para portugal porque, afinal, há por aí muitos mais países com mais condições e certamente que eles só vêm para cá para instalar a desordem. Já quase que se começam a preparar para anunciar atentados e outros desastres do género. E eu acho que isto faz todo o sentido.

Parece-me lógico: fogem do país deles porque está em guerra e vêm montar outra guerra aqui. Ou em qualquer outro lugar do mundo mas, entenda-se, nos outros países não faz mal porque têm outras condições e pelo menos não nos vêm chatear a nós, um povo eternamente sofrido mas confortavelmente à beira mar. Ah, que vida maravilhosa!

Gostava que toda a gente tivesse uma capacidade intelectual que lhes permitisse compreender que há pessoas boas e pessoas más de todas as raças, nacionalidades, religiões, e tudo mais que queiram usar para dividir o mundo. Há sírios bons e sírios maus. E quem diz sírios diz ciganos, pretos, muçulmanos, hindus. E brancos, os brancos como nós: há bons e  maus.

Ninguém me tira da ideia de que os problemas advindos de qualquer um dos supracitados são, muitas vezes, causados por nós, que nos continuamos a julgar uma raça superior a todos os outros e que preferimos apontar o dedo e dizer que foi o cigano que nos bateu do que confessar que fomos nós que o provocámos em primeiro. Porque é mais fácil, mais óbvio. Mais normal: são eles os maus e nós os mártires nas mãos deles. Sempre.

Pouco importa as razões que levam os sírios a fugir do seu país natal. Aliás, hoje cheguei mesmo a ouvir um «eles andam a matar crianças em alto mar!» que me chocou: as crianças morrem tal como morrem os adultos. Morrem numa tentativa desesperada de sobreviver e, por isso mesmo, têm mais mérito na própria morte do que nós algum dia teremos: morreram a tentar. Morreram desesperados, mas a tentar. E quando conseguem chegar, em vez de apoiar, ainda há quem ache que os pode usar para o jogo da batata quente: podem estar em todo o lado, menos ao pé de mim.

Desculpem: a probabilidade de aparecerem mortos numa valeta ou de alguém meter uma bomba no vosso local de trabalho não vai aumentar exponencialmente só porque há sírios em portugal. Infelizmente, vivemos num mundo onde isso pode acontecer em qualquer momento, e pelas mãos mais inesperadas de todas. Nem tão pouco digam que não há trabalho para nós quanto mais para eles, porque isso dá-me vontade de rir: não falta trabalho em portugal. Há é excesso de pessoas à procura de um emprego, e a recusar trabalho. Tabalhos esses que acabam por ser aceites por quem não tem escolha. E quem perde somos nós.

Não teríamos problemas a trambolhão se os portugueses não fossem um povo tão hospitaleiro apenas para quem vem de países com pedigree - mas, conhecendo como conheço as crias lusitanas, vão culpar os sírios de tudo, tal como culpam a crise e a praxe. E por mim estão à vontade, mas depois não se queixem. 
É bem feita.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

cinderella goes to the gym

E agora que meti na cabeça que quero experimentar uma arte marcial, não descanso enquanto não entrar oficialmente para o meio da turma de gajos.

Só tenho de me restabelecer antes disso. Só.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

cinderella goes to the gym

Por questões de saúde, tive de deixar de ir ao ginásio por uns tempos - depois de demais de um mês sem lá meter os pés e outro tanto a ir só de vez em quando e a voltar para casa mais cedo porque quase caía para o lado, hoje decidi voltar.

Não é que eu estivesse propriamente segura da minha decisão mas, apesar da minha alma de lontra obesa assumidíssima, já não conseguia ver comida à frente sem pensar que se ia alojar no meu cu e eu ia voltar a precisar de mudar a configuração de tudo o que não fosse descampado, num raio de 3km, para poder manobrar o dito. E sentia falta, é verdade.

Contudo, eu só entendi o quanto senti a falta daquilo quando comecei a correr e me senti feliz. É estúpido e esta é uma frase que choca até a mim - eu senti-me feliz por voltar a correr, por saber que não ia a lado nenhum naquela passadeira, que os meus problemas estavam exatamente onde e como os deixei, e que no fundo a minha vida é uma merda pegada com meia dúzia de dias de folga durante o ano, mas ali estava eu, a correr, como se estivesse no campo ou ao lado do mar, escolham o cenário a gosto.

Estava feliz, ponto. E pouco importa se quase caí para o lado outra vez e se no fundo, bem no fundo, sei que me devia deixar sossegadita mais uns tempos. Eu nunca nesta puta desta vida pensei que algum dia ia gostar tanto de exercitar o banhedo.