terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

marés

Há coisas que nunca perdoamos. Fingimos esquecer, durante uns momentos, mas nunca perdoamos realmente - e eu não sou capaz de perdoar os anos em que fui gozada, humilhada, posta de lado. Não perdoo o que isso me fez.

Demorei muito tempo a ter coragem de sair de casa maquilhada. Não que não gostasse de me ver - mas tinha medo. Tinha medo que pudessem pensar que eu tinha a ilusão de que ficaria bonita se estivesse maquilhada; acreditem, não tinha. Mas sentia-me menos feia, e mais normal dentro daquele que achei que seria o comportamento padrão de uma miúda. Demorei anos a aprender que não fazia mal, também tinha direito a ser menina como as outras.

Passei muitos anos a fugir; aconteceram-me coisas más. Quando temos 15 anos e todos aqueles que pareciam nossos amigos decidem humilhar-nos e, não contentes, metem quase todas as turmas do nosso ano a fazer o mesmo, parece o fim do mundo. Aos 20 sabemos que não é, mas que deixou marcas; sou muito mais desconfiada, desde aí. Tenho medo de confiar, de me entregar, e disparo à primeira dúvida: o medo tornou-me implacável. Doentia, talvez. Fujo das pessoas, perco-as - e às vezes nem tenho razão.

Aos 16 anos, almoçava às escondidas na biblioteca da escola. Por vezes, na casa de banho. Tinha medo de ser vista sozinha porque isso me tornava mais vulnerável, mais ridícula, mais hey-olhem-sou-demasiado-anormal-para-ter-amigos - era assim que eu me sentia. E, de certa forma, ainda é.

Ainda baixo o olhar se um rapaz bonito olhar para mim, mesmo que tenha sido sem querer e ele nem tenha dado por mim. Ainda fujo, ainda sinto vergonha. Ainda me escondo sempre que tenho de passar por um grupo de gente da minha idade; tenho medo de que recomece. De ser gozada outra vez, porque nada mudou. Porque, aos 18, vivi um dos piores dias da minha vida quando me disseram que não haveria volta a dar e teria mesmo de acostumar-me a viver assim. Teria de aprender que seria anormal a vida toda, que nunca me sentiria completamente bem porque há um fantasma, um passado sempre presente, uma malformação que se instalou para viver tantos anos quanto eu.

Eu nunca vou ser a menina bonita, com ou sem maquilhagem. Vou continuar como até aqui: a colecionar histórias falhadas, pessoas perdidas e noites sem dormir porque nem o meu melhor é o suficiente; o meu melhor não muda o que sou, não muda o que sinto. E também não me deixa dormir - nunca vou ser a menina bonita de ninguém, nem para mim mesma, porque mais do que sê-lo, seria preciso que eu o sentisse. E não sinto: sabotaram-me os anos em que eu devia ter aprendido a aceitar-me. Ensinaram-me que sou feia, que sou anormal, que não valho nada, e foi essa a lição que aprendi sobre mim mesma e que não consigo esquecer.

É por isto, só por isto, que há coisas que nunca perdoamos.

3 comentários:

Agridoce disse...

Que murro no estômago!... Estava eu para aqui nos dramas, a achar que ontem tinha levado um murro no estômago, e depois leio isto e penso: "deixa de ser parva e acorda para a vida"...

Não sei o suficiente de ti para poder comentar muito, e acredito pouco em palmadinhas nas costas, mas sei o que é não conseguirmos perdoar certas coisas. E sei o que é ter problemas de auto-estima. Espero que um dia consigas ultrapassar isso!

Anónimo disse...

Eu percebo - ou julgo que percebo - que tenhas muitas mágoas pelo que te fizeram passar, embora nunca tenha concordado com a visão que tens de ti própria. Não tenho nenhuma razão que me leve a dourar a pílula e quando digo que não te acho feia, é porque é isso que vejo. Mas percebo - ou julgo perceber - que não te sintas bem na tua pele. Não pelo que és, mas pelo que te fizeram crer que és. Mas cada vez que falas neste assunto, lembro-me sempre daquela máxima "falar é fácil" e procuro, com uma atitude paternalista, tentar convencer-te que está tudo bem e o problema só existe na tua cabeça. É verdade que só existe na tua cabeça, mas não é fácil mudar o que vai na cabeça das pessoas. Se fosse fácil, tu própria já o tinhas mudado.
Já na questão do perdão, não sou tão radical como tu. É verdade que há coisas que nos magoam muito e que não basta o reconhecimento do erro para que todo o mal fique automaticamente reparado. Mas nós somos todos seres errantes e talvez se olhássemos um pouco para os nossos erros, não fossemos tão fundamentalistas em relação aos erros dos outros. A maior partes das ofensas que nos fazem, ou que fazemos aos outros, são fruto de circunstâncias daquele momento. Mudadas as circunstâncias, nós próprios reconhecemos que não estivemos bem.
Já pensaste quantos dos teus colegas, agora adultos, não estarão arrependidos do que te fizeram?
Já imaginaste o peso que isso pode ter na consciência das pessoas que eles são agora e de como um pequeno gesto poderia fazer deles melhores pessoas?
Bem sei que as feridas abertas naquela altura, não podem ser saradas agora. Mas continuar a pôr-lhes sal, não traz mais nada, a não ser mais dor.
E quando puderes passa no IKEA e compra um espelho que te dê uma imagem mais real de ti. No dia em que perceberes que és mais bonita do que muitas gajas que se acham o máximo, talvez consigas ter de volta a paz que te roubaram na infância/adolescência.

Já agora: obrigado pela correção. Que vergonha, caraças. eheheh

ernesto disse...

agridoce, todos os problemas são válidos. Este dói-me a mim, e parece o pior do mundo... mas não é. Tenho de pensar nisso, pelo menos nos dias bons :)

esperto que nem um alho, infelizmente não funciona bem assim. Tenho contacto diário com uma das pessoas que me gozou durante anos e anos (aliás, foi por causa dela que acabei por escrever isto ontem) e ela parece não fazer a menor ideia do porquê de eu ter baixa autoestima - gozo comigo a toda a hora e, a dada altura, começaram a perceber que eu não gostava mesmo de mim.

Ela não se arrepende minimamente, nem pensa no quanto isso significou para mim. Ainda assim, quando fomos parar ao mesmo curso falei e falo bem para ela. Não guardo rancor, não lhe faço macumbas e, se neste momento não posso com ela, foi por tudo o que descobri depois, pela pessoa que conheci entretanto, à parte do passado. Não fico anos e anos a odiar as pessoas... mas não me esqueci. E culpo o meu passado por isso, assim como me culpo por não ter sabido impor-me.

Se calhar até é mesmo a mim que eu não perdoo.