domingo, 27 de dezembro de 2020

pelo natal

fomos (quase) sempre cinco no natal - e esse é o principal motivo para lhe ter perdido o gosto há tantos anos. sobravam demasiados lugares vagos à mesa, restava demasiado espaço para a saudade se sentar connosco e nos fazer relembrar que a distância só se quebra quando há vontade. este ano, foi o meu lugar que ficou vazio.

em vinte e cinco anos, este foi o primeiro em que puxei a cadeira noutra mesa, noutra casa, noutra vida, numa família que, não sendo aquela onde nasci, é aquela a que escolhi pertencer um bocadinho também. e doeu, não vou negar: na outra casa, de cinco passaram a quatro quando eu preferia que tivéssemos sido seis, eu e as minhas cinco pessoas favoritas neste mundo - mas este dezembro não é como os outros e está mau para a dança das cadeiras que não pertençam a uma só casa.

estive bem também. comi bacalhau à brás, bolo de bolacha e permiti-me a mergulhar nos sonhos molhados em calda de açúcar. faltou-me apenas o cheiro a café no ar à meia noite: foi sempre assim, nos outros vinte e quatro natais que vivi, menos naqueles em que ainda era demasiado pequena para os trazer na memória. faltou-me o cheiro a café mas não ousei pedir: sei que apareceria na mesa tão rápido quanto possível, mas isso seria trazer uma tradição de família para outra família e, de alguma forma, soou-me a traição. não é substituível. e não precisa de ser.

são sítios diferentes na vida, e sê-lo-ão para sempre - nem melhores, nem piores, mas diferentes. e se a maior parte do meu coração pertencerá sempre àquela casa onde éramos cinco em todos os natais e em todos os fins de semana, há outra parte que já se entregou à outra casa onde também eram cinco antes de eu chegar. e estou bem também.

e estou bem, mas o covid que se oriente porque para o ano eu quero a dança das cadeiras com as minhas pessoas, em todas as casas possíveis. quero até os abraços de que não gosto, a valer por dois para me compensar do buraco negro que me ficou no peito este ano.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

espécies de pessoas no ginásio

Apesar de adorar treinar, ontem estava num daqueles dias em que parece que fui para o ginásio com a bateria a 5% e a ameaçar desligar a qualquer instante. Vi-me obrigada a aceitar que, por algum motivo, estava demasiado cansada e a encurtar o treino.
 
Meio que danada comigo mesma, dei por mim a olhar à volta e a pensar nos vários tipos de gente com quem já por lá me cruzei, e na forma como nunca lhe dei o devido uso. Posto isto, segue-se uma compilação das espécies mais curiosas que frequentam o ginásio.

Espécie 1: O Parturiente 

O primeiro teria de ser sempre este - e quem não é capaz de identificar esta criatura mítica do ginásio, é porque nunca entrou num ginásio. Não há volta a dar. Isso... ou vocês são o parturiente do vosso.
Esta criatura, geralmente do sexo masculino, está sempre em trabalho de parto. Sempre. Possivelmente, julga ser sensual gritar enquanto levanta muito menos peso do que aquele que os meus bracitos suportam quando quero levar todas as compras, do carro para casa, numa só viagem, mas é só ridículo.
Adoram exibir-se e dizer que o treino é para doer, e muitas vezes acabam a mamar no biberon da whey. Ainda não consegui confirmar, mas desconfio que deixarão o ginásio também num seat ibiza rebaixado com a kizomba no volume máximo.

Espécie 2: As Comadres

Grupo de duas ou mais pessoas, podendo ser do sexo feminino, masculino, misto ou confuso, que se movem em bloco: se um quer ir para a passadeira, o outro vai para a passadeira também, se o primeiro quer mudar para a bicicleta, vão os dois para a bicicleta, and so on. Geralmente, estão a conversar sobre coisas que não interessam a mais ninguém, mas são particularmente irritantes numa fase em que o número de equipamentos está limitado.

Espécie 2.1: As Comadres Amantes

Exatamente o mesmo que as comadres, mas além de se moverem em bloco, fazem todo o treino juntinhos. Se um está a puxar ferro, o outro está atrás, à espera. Depois trocam de posição mas nunca, nunca, se largam.

Espécie 2.2: As Comadres Espiãs

Variante da anterior mas, no caso, as comadres formam mesmo um casal e uma delas parece só ter ido para se certificar de que o outro foi mesmo ao ginásio e não deu a desculpa do treino para se ir encontrar com a/o outra/o. 
A comadre espiã limita-se a seguir o tutxuzinho, praticamente sem treinar, antes que ele vá comer a porca da dona Amélia, que só anda no ginásio para fazer passadeira, enquanto ela não estiver a olhar.

Espécie 3: Os Esperançosos

Pessoa, podendo também ser do sexo feminino, masculino, misto ou confuso, que se pesa a meio do treino, completamente vestida e calçada. Aceito outras teorias, mas a minha é a de que estão a ver se já chegaram ao peso pretendido e podem dar o treino por terminado.
Se eu seguisse o mesmo método, viveria eternamente no ginásio.

Espécie 4: O Sonhador Artístico

Espécie, felizmente, rara que se senta no parapeito da janela e fica a olhar para a rua com o ar sonhador com que em 2009 se tirava aquela foto "desprebenidah", que toda a gente fazia de conta que não percebia ser uma selfie no tempo em que ainda nem se falava em selfies. Estão a ver a cena, não é?
O tipo que se acha sensualão e quer ser observado a sensualizar desprevenidamente. Só que de sensualão tem muito pouco. Ou nada.

Espécie 5: Os Trombudos

Odeiam treinar, odeiam pessoas e odeiam a vida no geral. Já chegam com ar de mal fodidos, olham para os outros com ar de mal fodidos, e tentam que os outros ouçam, por meio dos olhares assassinos, os "com licença" que lhes deveria sair pela boca, se não estivessem só com aquele ar... de mal fodidos.

Espécie 6: Os Caseiros

Estão em casa, é tudo deles! Estacionam numa máquina e pouco se importam se existem outras 59 pessoas à espera para a usar. Aproveitam para se sentar a descansar, a enviar mensagens, a olhar para o nada e tenho para mim que, não tarda, até as unhas dos pés cortam. 

Espécie 7: Os Carentes

Desconhecem o significado de distância social e de respeito pelo espaço vital do outro no geral. Deixam os pertences no parapeito da janela, para onde se dirigem a cada 30 segundos, mesmo que isso implique andarem a roçar o cu na máquina que outra pessoa está a usar. 
Pessoas: não é assim que se fazem amigos.

Espécie 8: Os Sovinas

Se pagam ginásio e o ginásio tem balneários, eles querem aproveitar a experiência na sua totalidade! Fazem-se acompanhar de todos os produtos de beleza e higiene pessoal possíveis, incluindo a máscara para o cabelo e... a gilete.

Espécie 9: As Estilosas

Sempre maquilhadas a preceito, nem quer seja para irem transpirar que nem porcas - ou então sou só eu quem transpira que nem uma porca e as outras moças vão ao ginásio só como quem vai desfilar. Deve ser por isso que, há uns dias, me cruzei com uma moça com um iluminador tão potente naquelas bochechas (ou maçãs do rosto, meninas de bem!) que me ia ferindo as vistinhas.

Espécie 10: Os Índios

De todas, esta é possivelmente a espécie que mais confusão me faz. Mais até do que os próprios parturientes!
Geralmente, esta espécie vai para as aulas de grupo gritar coisas como Uh-Uh, por motivos que creio que nunca saberei explicar, mas que me fazem sentir vergonha alheia do mais profunda possível.
Gente, não façam isto.

É por isto que esta que vos escreve nunca, por nunca ser, vai para este antro de espécies raras sem estar devidamente munida de fones para se esquecer de onde está. Na verdade... ainda gostava de ver em que categoria me colocariam aqueles que comigo se cruzam diariamente. Ou talvez não.

sábado, 19 de setembro de 2020

a ousadia de viver

Sinto, lentamente, o medo a voltar a instalar-se no meu peito - ainda não é o pânico, mas um certo nervosismo com uma pitada de ansiedade. É o recomeço do que nunca chegou a terminar. 

O verão foi leve: habituei-me bastante bem à rotina simpática de sair do trabalho quando o sol ainda ia alto, correr para o vestido solto e descer a rua, de sandália no pé, em direção à praia. Este foi o meu primeiro verão a viver nesta cidadezita lambida pelo mar, e não creio que o tivesse aproveitado muito mais do que isto se não estivéssemos a viver uma pandemia. Tenho a sorte de ter escolhido viver numa cidade que mais parece uma aldeia grande: apesar de ter achado que estava muito mais cheia do que em outros anos, havia espaço de sobra para continuar a respirar em segurança.

Aos poucos, fui-me esquecendo do que não tinha: não pensei nas noitadas que perdi e só senti uma pontada de angústia ali nas primeiras semanas de agosto, quando fui obrigada a aceitar que não iria mesmo ver as minhas pessoas este ano. Depois, passou. Aceitei. Não havia outra escolha.

Agora, os meus sentimentos estão a mudar: era mais fácil viver num corropio e não ter demasiado tempo para se pensar no que está realmente a acontecer. O regresso inevitável ao sofá, conjugado com o aumento dos números, está a devolver-me essa sensação de medo e claustrofobia. A certeza de que, por mais que se resista, será uma questão de tempo até que voltemos a ser todos feitos reféns nas nossas casas. E é aterrador.

Continuo a ir ao ginásio: quando me perguntam se acho seguro, respondo que vai demorar demasiado tempo a ficar tudo bem para que possamos deixar de ter a ousadia de ir vivendo, pelo menos até que nos voltem a colocar as vidas em pausa. Mas sei que já nem isto é bem verdade: estou mais ou menos ciente de que, por mais que me custe, mais tarde ou mais cedo irei deixar o ginásio também. E isso já me começa a enlouquecer um bocadinho em adiantado. 

É bonito dizer que vai ficar tudo bem... mas quanto teremos de sofrer e quantas pessoas teremos de perder até que fique mesmo tudo bem?

domingo, 14 de junho de 2020

black lives matter... e as outras todas também.

Às vezes sinto que sou o velho que segue feliz da vida na autoestrada sem perceber por que caralho decidiram todos os outros andar em contramão - e, por esse mesmo motivo, fiquei quieta enquanto o mundo falava do George Floyd como se fosse aquele amigo de infância de toda a gente, e publicava imagens pretas. Tentei ver o mundo pela mesma perspetiva, mas devo estar a precisar de trocar as lentes.

Tentei, tentei, mas não vi o que todos viram. Gerou-se todo um movimento muito bonito, com tanto direito a um blackout no instagram quando a desacatos, a mais violência, para relembrar o mundo de que temos de abolir o racismo. É lindo, é nobre, porém não consegui identificar o racismo naquele vídeo - pode ser um problema com a minha internet, que nem estou satisfeita por aí além com a NOS, mas não vi o que os outros viram.

Vi uma violência barbara. Vi um homem tirar a vida a outro, quando não há nada que o justifique neste mundo. Vi uma pessoa a implorar que o deixassem respirar, e a acabar por morrer sufocado. Mas continuei a não conseguir encontrar o momento exato em que houve essa transição entre a violência gratuita e o racismo.

No fundo, não serão os verdadeiros racistas os que partem do princípio de que o Floyd morreu unicamente por ser preto? Não será essa interpretação o reflexo da culpa por julgar diferente alguém com outra cor de pele?

As pessoas entregaram-se às causas e à ideia de que temos de gritar sempre por qualquer coisa, mesmo que não importe muito bem o quê: assistimos a atos violentos todos os dias. Cá e lá. Polícias ou civis - mas se fosse branco, ninguém iria perder o seu tempo para ir para a rua. Seria só mais um dia normal nos estados unidos. A prova disso foi pouco se ter falado do senhor idoso que, durante as manifestações, foi empurrado por um polícia, bateu com a cabeça e ficou a sangrar no chão sem que alguém o ajudasse -  porque era branco, e se era branco não há problema.

Estamos a avançar para uma era em que nada do que fuja do normal pode ser comentado: posso dizer que não gosto de homens com lábios carnudos, mas não posso dizer que não consigo achar a maior parte dos pretos bonitos por essa ser uma característica dominante, porque já vai aparecer alguém a dizer que sou racista. Posso dizer assumidamente que não gosto do corpo da carolina patrocínio, mas não posso dizer que não gosto do corpo de uma qualquer modelo plus size, porque isso já é gordofobia. E se por acaso me ocorrer dizer que o que tenho visto no tiktok me faz pensar que começa a ser uma moda entre os miúdos dizer orgulhosamente que pertencem à comunidade LGBT só para parecerem diferentões e super open minded, há de aparecer alguém a chamar-me homofóbica. Nada disto poderia estar mais longe da verdade -  mas sou a favor da liberdade e, sobretudo, do não exagero.

O preconceito existe em todo o mundo, e portugal está muito longe de ser exceção - e não tenho dúvidas de que haja muita gente a sofrer preconceito por ser preto, mas não acho que seja menos válido do que ser discriminada por ter nascido com uma qualquer malformação e, a não ser que por lapso não se tenham lembrado de me convidar, nunca vi ninguém organizar uma manifestação para me lembrar de que afinal tenho um lugar no mundo. 

Tudo o que é demais acaba por cair no ridículo: perdi seguidores por ter dado a minha opinião relativamente ao feminismo exacerbado, e estou mais ou menos convicta de que acontecerá o mesmo depois de me opor novamente ao que dizem as massas, mas não me faz sentido ir para a rua neste momento gritar pelo fim do racismo quando o preconceito existe em todas as formas imagináveis, pelos motivos mais ridículos. E todos eles precisam de ser debatidos, todos eles precisam de ser encerrados de uma só vez, sem desprezar, sem se agarrarem ao grito do ipiranga que estiver em vigor na altura só para parecer ser uma pessoa do bem - aposto que, no meio daqueles milhares de pessoas que ignoraram a distância de segurança e foram para a rua gritar, estariam algumas das que me fizeram sentir que não pertencia por ter um nariz torto, ou por ser gorda, ou por ter roupas da feira. Afinal, como é? Se tivesse nascido preta, estava absolvida de todos estes pecados?

Não me fodam.
Abram os olhos, sejam críticos com o que se passa à vossa volta: assistimos a atos absolutamente condenáveis todos os dias. Também em portugal já tivémos polícias a agredir pessoas. Brancas. Temos exemplos de pais capazes de matar filhos de forma brutal, colegas a matar alguém só porque não queria mais do que isso. Isto acontece todos os dias, e não é só aos pretos, ou aos gordos, ou aos gays - antes de tudo, antes de todos, está a violência. Querem gritar, querem revoltar-se? Que seja contra ela, acima de tudo. 

terça-feira, 26 de maio de 2020

o covid resumido

Ao início, ninguém levou muito a sério: víamos os jornalistas ansiosos por notícias frescas, quase quase a acampar num aeroporto para garantir que assistiam à chegada do primeiro caso de coronavírus  a Portugal. Andavam tão desesperados que o povo ria e dizia que isto era como qualquer outra merda vinda da China e não iria durar nada.

Entretanto, a coisa começou a ficar feia. Espalhou-se a notícia de que estávamos a viver uma pandemia e ninguém sabia muito bem o que isso significava: uns, cagaram-se de medo e foram a correr comprar quantidades industriais de papel higiénico. Talvez acreditassem que, se se mascarassem de múmia, ficavam imunes. Outros foram abastecer-se de salsichas e atum para 32 anos, pelo que julgo que teremos muitas criancinhas a nascer depois disto que se alimentarão unicamente à base de arroz com sautchitchas até à vida adulta.

Fecharam os ginásios para podermos ficar todos gordos mais à vontade, e fecharam tudo o resto a seguir. Talvez não por esta ordem, que antes disto já estavam as criancinhas todas de volta a casa e os pais, que normalmente se queixavam do pouco tempo que tinham para ver as crias, a lamentar profundamente a decisão de não ter adiado a coisa um bocadinho para ir comprar preservativos. Paciência.

Depois, o caos: mandaram-nos ficar em casa e lidar com quem lá vivia a tempo inteiro, sem direito a fuga, sem legalizar o homicídio. Foi difícil para todos: uns divorciaram-se, outros fizeram filhos (os que vão comer arroz com sautchitchas uma boa parte da vida), e outros foram lidando como podiam com a situação - se deus nosso senhor - ou a pílula - quiser, estou no último grupo. Se assim não for, tenho de me ir abastecer de salsichas.

Nos primeiros tempos, as pessoas ficaram todas com medo de sair de casa e estavam tão gratos pelos que continuavam a trabalhar em hospitais e supermercados que começaram a ir bater palmas para a janela - os mosquitos que faleceram durante estes atos ainda estão por contabilizar, mas acho bem que entrem nas estatísticas da morte por covid-19, porque há que haver respeito. Fizeram pão, fizeram bolos, alguns consumiram álcool como que para comemorar as festas da aldeia, que certamente não existirão, e outros, como eu, não devem ter feito porra nenhuma porque a época é de stress agudo. Houve quem instalasse o tiktok - shame on me - para fazer companhia nas horas em que não há mais nada para matar o tempo, houve quem tivesse dedicado o tempo a construir teorias da conspiração.

As duas semanas iniciais foram-se prolongando e as pessoas foram-se esquecendo do #stayhome. A dada altura, o povo cansou-se de estar armado em herói de sofá e começou a ir para a rua, como se tudo isto não tivesse sido mais do que um sonho estranho e já nos pudéssemos lamber uns aos outros como antes. Pessoalmente, sou a favor de uma petição para que todo o contacto físico não estritamente necessário seja abolido para todo o sempre, que até nem desgosto tanto assim desta distância. Mas isto sou eu.

Inicialmente, o uso de máscara era opcional, depois passou a ser desnecessário, até porque temos poucas, e entretanto lá se começaram a fazer as de pano, reforçou-se o stock e passaram a ser obrigatórias. Estou com esperança de que haja um plot twist neste ponto e que entretanto possa voltar a ir às compras sem transpirar do buço como se tivesse acabado de correr 10 km.

Passámos do #stayhome ao #desconfinando, mas agora tudo de cara tapada e prontos para dar início a um assalto a qualquer momento. A máscara passou a ser parte do outfit e as pessoas conquistaram o direito a ser mal fodidas a tempo inteiro porque é mais fácil disfarçar o azedume. Em contrapartida, saíram a ganhar todos os que convivem com seres humanos que desconhecem a função de uma escova de dentes e vivem com uma camada de placa bateriana nos dentes, mais espessa do que a camada de gordura que me protege os abdominais. Agora pensem.

Para muitos, foi uma fase transformadora, em que alinharam os chakras e se tornaram melhores pessoas. Para outros, foi só uma ótima oportunidade para refletirem sobre as vidas merdosas que levavam, e para deixarem de conseguir dormir quando se aperceberam de que seriam obrigados a voltar para elas - nota-se que foi uma frase muito pessoal, não nota?

2020 só teve dois meses: janeiro, o mês mais longo desta vida para quem vê o dinheiro a lutar para chegar ao fim, e fevereiro, um mês curto e singelo, que serviu para nos animar antes das desgraças que março trazia no bolso. A partir daí, foi tudo cancelado, o tempo deixou de contar e, no fundo, ninguém sabe muito bem o que andou a fazer nos últimos dois meses e meio, como é que acabou com uma franja cortada em casa ou com o corpo cheio de pêlo a lembrar o chewbacca.

Algo me diz que a passagem de ano vai ser de arromba, com toda a gente junta  na rua a gritar e a bater tachos para enterrar de vez este ano miserável - e depois vamos todos para as urgências com covid e damos início à segunda vaga.

Não querendo desiludir ninguém... ainda só vamos a meio deste ano filho da puta. De nada.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

onde quer que esteja.

Custa-me crer que tenha vivido vinte vezes o vinte e cinco de maio sem fazer a menor ideia de que, um dia, esta data carregaria o peso eterno do maior golpe que a vida me deu - há precisamente quatro anos, estava de malas feitas para uns dias no sul de frança e para o reencontro que mais desejei com a minha terceira avó. Não fazia ideia de que, à última hora, teria de encontrar um espaço extra entre as minhas roupas para levar até ela o último fato que lhe vestiram. Quatro anos depois, ainda não consigo colocar em palavras o que senti por ela me ter sido roubada por um triz
Deixei-me atormentar pelos ses durante muito tempo: se o ano fosse comum e não bissexto, se tivesse viajado no dia anterior, se os médicos tivessem sido mais rápidos a fazer o diagnóstico. Se tudo isto, se tudo aquilo: talvez ainda nos tivéssemos reencontrado na manhã seguinte. Talvez eu tivesse sido capaz de me despedir, ainda que a ideia de nos despedirmos de alguém que não volta me pareça vã, quase absurda. Não há palavras que assentem nesse momento, não há nada que se possa fazer senão agarrar a mão com toda a força e esperar ser capaz de agarrar, muito mais do que o corpo, a alma. A vida.

Perguntei-me muitas vezes onde falhei, em que momentos poderia ter ficado mais cinco minutos, em que dias da semana poderia ter ligado só para ouvir a voz dela, e se valeu mesmo a pena ficar amuada com algumas situações. Queria perceber o que perdi, o tempo que deixei passar assumindo que teria todo o tempo do mundo daí em diante, sem fazer a mais pequena ideia - ou sem aceitar - que a vida não é ilimitada. Hoje, dava tudo por mais uns minutos. Só mais uns minutos.

Começo a conseguir sorrir quando me lembro dela: quatro anos depois, já sou capaz de me lembrar de todas as vezes em que fugi de casa da minha avó para casa dela, em que atravessei a estrada, descalça, e me sentei nas escadas a falar sobre nada num tempo em que o tempo era o que menos importava. De quando lhe pintei as unhas dos pés e ela contou a toda a gente, como se fosse um grande acontecimento, e de todos os momentos em que rimos até chorar. Penso nos caracóis louros que lhe pintava em casa, e de quando a (des)penteava.

Não era santa: tinha um feitio terrível, ou não partilhássemos nós um sobrenome, e era um osso duro de roer. Gostava dela especialmente por isso: era o que era, e quem não gostava só tinha de se arredar. O problema é que era realmente difícil não gostar - por mais que fosse uma mulher de pêlo na venta, tinha um coração enorme.

Partilhávamos a obsessão pelo café: desde antes de eu ter idade para o beber, já me sentava com ela no canto da mesa a conversar ,durante horas, com uma água suja e bem doce. Hoje bebo-o forte, amargo e parte-me o coração que ela não tenha vivido o suficiente para me ver voar do ninho e eu lhe poder apresentar a minha casa.

Então, roubei-lhe uma chávena e foi das primeiras coisas que trouxe quando me mudei: nunca vai subir estas escadas, nunca se vai sentar à mesa, mas está presente em todos os dias da minha vida.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

os machos e as virgens ofendidas

Há uns meses, numa entrevista de emprego, a rapariga perguntou-me se eu me achava preparada para trabalhar no meio de homens ligados à construção civil. Ri-me, e respondi que, se leu o meu currículo, deve ter percebido que venho do meio dos camionistas, e que por acaso esse foi o trabalho de que mais gostei. Espantem-se só: fui tão mal tratada, tão desrespeitada que, quase um ano e meio depois, ainda mantenho contacto com alguns deles. 

É importante defender as mulheres, é importante lutar pelo respeito, mas creio que o limite será quando se começam a desenvolver preconceitos sobre os homens, porque são pedreiros, porque são camionistas, porque têm um pêndulo entre as pernas. Calma lá que nós não somos todas santas, e eles não são todos cabrões.

Não sei se afinal é por ser mais sortuda do que sou capaz de entender, ou mais inocente, mas a verdade é que nunca me senti diminuída ou intimidada por ser mulher - chocante, eu sei. Nunca deixei de vestir uma saia ou um vestido por saber que iria frequentar um sítio com homens, nunca mudei uma vírgula da minha vida como que para me esconder desses seres mauzões portadores de pila. Imaginem só que nem tenho quaisquer problemas em levar o meu carro a oficinas ou à inspeção, e nunca pedi a um macho que o fizesse por mim por eu ser uma donzela indefesa. Porque... bem, porque não sou. Nunca me senti como tal.

Ontem, levei o meu carro à oficina.
Por ter alguma urgência na resolução de um problema elétrico e o eletricista da oficina a que recorro sempre - por ter mecânicos simpáticos, que entendem que eu percebo tanto daquilo quanto de mandarim mas explicam as coisas sem parecer que estão a falar com uma atrasada mental - acabei por ter de recorrer a outra.

Lembrei-me de uma onde, há uns anos, tive uma entrevista de emprego para a vaga de rececionista e o dono chamou-me barbie: suficientemente perto de casa para que me pudesse deslocar a pé, se tivesse de lá deixar o meu rico coche, não precisei de pensar duas vezes e fui até lá, ainda que a achar que, pela localização da dita, talvez tivesse de começar a decidir que órgãos estaria disposta a vender para pagar o arranjo.

Depressa percebi que o eletricista era, nem mais nem menos, o senhor que, no dia da entrevista, disse que eu não poderia ser contratada porque as coisas lindas acabavam com ele (têm o link para esse post ali em cima). 

Expliquei-lhe que um dos problemas era o botão dos quatro piscas que, pouco antes de toda esta situação, lembrou-se de avariar do nada: num dia igual aos outros todos, a minha pobre viatura, abandonada à porta do sítio onde trabalho, achou que estava na hora de dar um pouco de cor àquela rua sombria e ligou os quatro piscas, a meio da manhã, como que a convidar toda a gente para uma festa silenciosa. Anda, desde então, encravado com um gancho do cabelo, só numa de não passar a vida a piscar por todos os lados.

Chegou à conclusão de que se carregasse com um bocadinho mais de força, ele acabava por prender e não valia muito a pena estar a investir em peças novas nesta fase, principalmente por já ser um carro maior de idade.

Os outros problemas tinham imperativamente de ser resolvidos, ou o meu velhinho não iria passar na inspeção: deixei-o lá, e fui à minha vida.

Vi o tempo a passar: mais de duas horas depois, eu já pensava que talvez nem fosse má ideia tentar hipotecar os pêlos do buço, quando o senhor me disse que já estava pronto.

Explicou-me que a avaria se devia ao desgaste, mas que esta não é uma boa altura para andar a gastar demasiado dinheiro em peças novas e então tinha arranjado as velhas. Além disso, as meninas bonitas merecem uma atenção no preço, e então só me cobrou uma hora e meia de mão de obra em vez das mais duas em que esteve, realmente, a trabalhar.

Poupou-me bastante dinheiro: ajudou-me, numa altura em que também não me dá muito jeito investir muito, principalmente por o carro ser velho. Podia ter-me vendido peças novas, podia ter-me cobrado bastante mais do que apenas a mão de obra, e não o fez. 

Fez-me sentido escrever sobre isto porque vivemos numa altura em que os homens são todos uma cambada de filhos da puta e qualquer comentário relativo a uma mulher já merece ser punido: aposto que o comentário das meninas bonitas já faria umas quantas capazes gritarem assédio: o senhor ainda acrescentou, em tom de brincadeira, que sempre quis estar na receção, só para ter uma desculpa para pedir o número a todas as meninas lindas que por lá passam, mas nem por isso me senti minimamente assediada por um homem que tem idade para ser meu avô. 

Não me ofendeu. Não me tocou. Não me fez sentir minimamente desconfortável porque percebi que era só uma tentativa de me elogiar e ser engraçado ao mesmo tempo. Senti-me, isso sim, grata pela ajuda numa altura em que ela é bastante bem vinda, e com alguma fé na humanidade restaurada pela consciência de que ele escolheu poupar-me dinheiro, em vez de se limitar a querer vender.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

o dia em que atirei a toalha ao chão

Este período tem sido bom para toda a gente: não houve uma alma que não se tivesse redescoberto, que, por ser proibido encontrar outras pessoas, não se tenha reencontrado. Agora toda a gente encontrou a chave para a felicidade e o sentido para a vida. Até já sabem fazer pão! Ou então não, mas parece mal dizer que nos sentimos miseráveis.

Falhei.
Mais de dois meses depois, não sei mais do que sabia antes. Minto: intensificou alguns sabores amargos e envolveu-me num medo ridículo de ter de me voltar a entregar a eles. Porque vou. A vida alinhou-se para toda a gente, mas não me deixou escolha: foi hoje que atirei a toalha para o chão e me dei por vencida. Tenho todo o tempo do mundo e mesmo assim sinto-me exausta porque há uma ansiedade que me consome e não me deixa dormir, neste frenesim de uma existência em contra relógio e da pressa de ser mais feliz amanhã. Não consigo mais.

Hoje resolvi deixar de procurar, e deixar de viver com o telemóvel na mão à espera de que ele toque. Pela minha sanidade mental, desisto agora para me permitir a perdê-la dentro de pouco mais de uma semana.

Já não há nada a fazer.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

sexta feira

E nenhum milagre aconteceu.
Não senti a falta deste viver com o telemóvel como uma extensão do braço, numa espera desesperada por respostas que nunca chegam. Não senti a falta de sentir a esperança a dissolver-se nas horas e a receber cada anoitecer com um sentimento de falha, de perda. Todos os dias.

Estou numa situação difícil de explicar, num limbo esquisito: poderei ou não ficar desempregada dentro de duas semanas, e se há uma parte de mim que está aterrorizada com a ideia de voltar ao desemprego, a outra está mais aterrorizada ainda com a ideia de renovar um contrato que nunca desejei em primeiro lugar. 

Fala-se muito das saudades, da falta que nos fazem as pessoas e nos reencontros mais esperados - ninguém fala do oposto. Da falta que não nos fez quem nos causava um mal estar constante, e da vontade de adiar esse reencontro eternamente. É impossível que eu seja a única a sentir isto. É impossível que não exista uma única alma neste mundo que sinta o que eu sinto, este nó no peito porque o período de afastamento torna insuportável sequer imaginar a reaproximação. Esse dia em que terei de sorrir, acenar e fazer de conta de que estou feliz por voltar.

Don't get me wrong: a quarentena não tem sido fácil para mim, tal como para a maior parte das pessoas. Não consegui encará-la como umas férias, ou uma pausa, porque só me veio desequilibrar: passei de muito ativa a quase sedentária, perdi bastante peso por falta de apetite e uma alimentação degradante, fiquei mais instável do que nunca ao nível emocional e, especialmente desde o final do mês passado, tenho-me sentido permanentemente nervosa porque não sei o que será de mim. Ainda assim, mesmo que o panorama seja miserável, a ideia de ter de voltar ao trabalho sem um backup plan para o fim do meu contrato, consegue fazer-me sentir muito pior. Eu já quereria sair, mesmo que não tivesse acontecido tudo isto - mas agora quero-o mais do que nunca porque, dois meses depois, não consigo imaginar-me a voltar para um sítio onde me arrastava até ser fim de semana outra vez.

Neste momento, não sei nada de mim. 
É bastante provável - ou quase certo - que estarei de volta na próxima segunda feira. Sem plano de fuga, sem cartas na manga, sem plano b. Mais ou menos obrigada a ficar. Mais ou menos condenada a continuar a arrastar-me por aí - e, acreditem, não há quarentena que supere esta sensação.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Meu amor,

antes de ti, perguntei-me muitas vezes qual seria o passo a seguir às borboletas, e o que se seguiria quando o coração aprendesse a desacelerar e não estivesse sempre a tentar escapar-me do peito por um mero encontro acidental. Na altura, estava convencida de que vivia permanentemente apaixonada, numa fase tão negra da minha vida que um par de olhos fixos nos meus já se assemelhava quanto baste à luz ao fundo do túnel para onde eu queria correr para me salvar. Mesmo que fosse sem querer. Mesmo que, quem me olhasse, nem fosse realmente capaz de me ver: este, era o ápice da atenção de que me julgava merecedora. Nunca esperei mais do que isso, e portanto também não acreditava na vida depois da paixão. Achei que tudo perderia a piada no dia em que soubéssemos o outro de cor de tal forma que já se dispensassem as palavras para saber exatamente o que não foi dito.

Depois, tu. 
Repara como separo sempre a minha vida num antes e depois de ti: é como se tivesse renascido, como se o mundo se tivesse transformado e já nada fosse como eu tinha imaginado antes. Mudou para melhor. Transformou-se em tudo aquilo que não julguei existir.

Ensinaste-me o amor nu, aquela versão que já não disfarça, já não finge não querer, e o prazer louco de poder ser exatamente quem eu sou, sem quaisquer filtros, sem quaisquer barreiras, em todos os dias da semana. Em todas as horas do dia.

Fizeste-me perceber que também se ama pela manhã, mesmo com hálito de cão e cabelo desgrenhado - por estes dias, desgrenhado já é o estado normal - e que se ama ainda mais de pijama, ou com as calças de fato treino mais velhas, do que quando nos vestíamos para nos encontramos por aí. Há uma beleza selvagem na partilha por inteiro, na queda dos tabus, na abolição da vergonha. E, afinal, o amor não morre quando a rotina se instala e é necessário falar das contas para pagar, ou do aumento dos combustíveis, ou de absolutamente nada. 

Achei que dois anos e meio de relação à distância me teriam deixado imune às saudades nas tuas ausências temporárias, mas enganei-me: de cada vez que te vais embora, mesmo que seja só por uns dias, posso jurar que não me dói menos do que em cada domingo que fiquei a ver-te ir, à porta de casa, de lágrimas nos olhos e saudades já reinstaladas com sucesso. Talvez chegue a doer um bocadinho mais, porque já não estou habituada a adormecer sem te ter ao meu lado, ou a não te ter ao lado, na varanda, enquanto reparamos em coisas tão banais quanto a roupa nos estendais alheios ou os carros permanentemente estacionados nos mesmos lugares. Esta casa parece vazia nos dias em que não estás.

Habituei-me muito bem a partilhar a minha vida contigo, mesmo que não seja todos os dias fácil. Mesmo que não sejamos capazes de nos entender à primeira em todos os momentos, mesmo que tenhamos de encerrar batalhas num abraço. 

(Mais de) três anos depois, às vezes ainda não acredito na sorte que tive: olho para ti e derreto-me no teu sorriso, quase como se fosses um sonho inconcretizável, demasiado bom para ser real. Mesmo depois de todo este tempo, mesmo depois de não haver um milímetro de nós por revelar ao outro, há dias em que me perco no teu abraço como se ainda agora estivéssemos a começar e eu ainda não te soubesse de cor. Como se cada abraço não passasse de um passinho pequenino rumo a um amanhã que logo se vê: e é nesses momentos que tenho a certeza de que ainda me apaixono por ti quase todos os dias.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

ESTOU A RECRUTAR

Um santinho simpático para um milagre laboral.
(desculpem lá a desilusão, mas é para verem o que sinto quando leio anúncios de emprego para teletrabalho e afinal é só para vender sabonetes da avon)

Esta foi a forma mais leve que encontrei para explicar ao mundo o verdadeiro estado de calamidade, atualmente em vigor dentro de mim, que não foi decretado pelo governo mas está a ter bastante mais impacto do que o outro, o verdadeiro, aquele que deveria abranger toda a gente e relembrar que ainda estamos mais ou menos fodidos, embora já não pareça.

Tenho duas semanas para encontrar um novo emprego.
Duas semanas para fazer o que não consegui fazer em meses, e que tenho ainda menos esperança de conseguir agora, numa fase em que está tudo virado do avesso e a fé de conseguir um milagre escasseia a cada hora que passa sem qualquer resposta. Dizer-vos que estou a entrar em desespero não chega sequer para levantar o véu do que têm sido os últimos dias - ou semanas. Sinto um friozinho na barriga permanente, num desassossego constante que me acelera o coração e não me deixa respirar.

No final do mês, o meu contrato acaba.
Sempre imaginei que já teria conseguido encontrar alguma alternativa por esta altura. Que poderia entregar a farda, agradecer pelo ano de aprendizagem e sair, pela porta da frente, sem olhar para trás: não lamento, nunca lamentei, nada do que levo na bagagem, mas também nunca fiz questão de prolongar a estadia num lugar onde, claramente, nunca fui muito feliz. 

Achei que tinha tempo, que a vida se haveria de compor. 
Talvez tivesse tido, se não fosse tudo isto, se o mercado de trabalho não estivesse nas ruas da amargura e a concorrência tivesse aumentado drasticamente. Talvez tivesse sido possível, mas não foi.

Continuo em casa: ninguém fez questão de me avisar que afinal a clínica ainda não estava pronta para ter todos os funcionários a trabalhar e o meu lay off iria ser prolongado por mais um mês. Não posso, definitivamente, queixar-me senão de mim mesma, ou da pouca sorte ou das fracas escolhas, e de ter falhado redondamente em encontrar uma saída a tempo - tempo esse que parece não faltar e, ao mesmo tempo, nunca ser suficiente. Sinto-me a viver em contra relógio, numa batalha ingrata contra o passar das horas sem que mais nada possa fazer.

Resta-me respirar fundo, e esperar.
Esperar que ainda haja um plot twist na minha vida, que ainda bata certo no final.
Esperar que corra tudo bem.

domingo, 3 de maio de 2020

sangue, dor e sofrimento - ou um título para chamar a atenção

Ainda me lembro da primeira vez em que ouvi falar dos copos menstruais e, não vou mentir, a minha primeira reação foi qualquer coisa tipo isto:


Uma pessoa cresce a ouvir histórias de terror sobre pessoas que vão parar ao hospital com garrafas introduzidas em partes do corpo que habitualmente não transformamos em garrafeiras, e de repente estavam a dizer-me que enfiar lá um copo era normal. 

Até há coisa de, sei lá, um ano e meio, nunca mais pensei sobre isso: entretanto, devido a uma série de problemas que me fizeram querer afastar das partes toda e qualquer coisa que pudesse irritar a área, voltei a pesquisar sobre o copo. Já tinha crescido um bocadinho, felizmente, e percebi que não era assim tão estranho quanto isso.

Pesquisei muito sobre o assunto - mas assim MUITOOO mesmo, porque esta alma sovina não iria gastar 25€ para uma borrachinha de introduzir no pipi sem ouvir mil e quinhentas pessoas a falar sobre o assunto - e é por isso que estou a escrever este post com a minha opinião absolutamente irrelevante, para o caso de alguém também andar na dúvida.

Acabei por me decidir e fui a uma wells para comprar o meluna, aquele que me parecia o melhor. É de referir que existem tamanhos diferentes, dependendo do corpo de cada mulher, e é uma merda porque... bem, ninguém sabe propriamente quanto é que veste de vagina, não é? 

A rapariga, que claramente nunca tinha usado um, aconselhou-me um S; não a condeno, vá! Com esta cara que mais parece uma máscara de carnaval, entendo que a moça tenha partido do princípio de que seria uma eterna virgem. Portanto, deu merda: funcionou nos primeiros tempos, numa fase em que me estava ainda a adaptar (ou melhor, na altura eu achava que as pequenas fugas eram normais por não estar acostumada), mas depois percebi que era mesmo demasiado pequeno para mim. E não, não há nada de errado aqui: o S da meluna foi pensado para miúdas virgens, e o tamanho "normal" é o M, mas a miúda que me atendeu ficou assustada com a diferença de tamanhos e achou que teria de ser o mais pequeno.

Com isto, uns dois meses depois de ter gasto 25€ desta vida (ou perto, vá), fui a correr para uma farmácia para comprar outro. Não me lembro ao certo da marca (easycup?), mas foi ligeiramente mais barato, e nesta já tinha mesmo de ser o S visto o M ser para mulheres que já tenham passado por um parto vaginal. Again, duvido que vos interesse particularmente o tamanho do meu copo, mas é só para perceberem que é preciso ter atenção na hora de comprar e que varia de marca para marca.

E depois, Cinderela?
Olhem, depois apeteceu-me esbofetear aquela catraia que, há uns anos, gozou com a existência de um copo para aparar as beiras do útero!

Acreditem quando vos digo que foi o melhor upgrade que fiz na minha vida: duvido que neste momento já tenha recuperado do investimento (por ter comprado dois, gastei cerca de 45€ no total), mas é um descanso. Principalmente quem, como eu, tiver uma profissão em que nem sempre é fácil ir à casa de banho para trocar um tampão, vai perceber que o céu existe quando lhe bastar preocupar-se com a coisa duas vezes ao dia.

O copo é feito de silicone cirúrgico, e existem várias dobras possíveis para o fazer caber. Uma vez lá dentro, ele abre, cria vácuo e a magia acontece. Agora, se forem daquelas moças que têm algum receio de tocar em si mesmas, talvez não seja a melhor ideia: é preciso passar o dedo à volta para se certificarem de que o copo abriu. Relembro que é o vosso corpo e não há nada de nojento nisto, desde que tenham as mãos lavadas.

À semelhança dos tampões, não se sente absolutamente nada, desde que esteja bem colocado. Uma vez lá dentro, podem ser felizes durante 12 horas sem medo de morrer de síndrome do choque tóxico. Pessoalmente, nunca conheci alguém a quem tivesse acontecido, mas nunca fiando.

Existem imensos vídeos no youtube a mostrar as dobras possíveis, e toda uma série de outras questões que também vêm nas instruções do copo. Neste momento, já uso há um ano e não me consigo imaginar a usar qualquer outra coisa. Não faço ideia se alguma de vocês desse lado estará interessada ou minimamente recetiva a experimentar, mas acreditem que eu acho que mudou a minha vida para melhor e não lamento um cêntimo gasto nisto - e isto, minhas caras, significa muito vindo de mim porque eu odeio gastar dinheiro.

Se estiverem na dúvida, experimentem. Se não estiverem ainda na dúvida, aconselho-vos a a ficar porque vale muito a pena. E, no fim de tudo, já têm um copo para brindar* ao quão lindas e fantásticas são as fêmeas por sangrarem cinco dias e continuarem de pé. Éxétegue girl power.

(*não recomendo, mas se o fizerem enviem um vídeo.)

quinta-feira, 30 de abril de 2020

parece mal dizê-lo.

Passaram (quase) seis semanas; seis semanas em que, na maior parte do tempo, esta casa me parece demasiado pequena para que seja capaz de respirar dentro dela mas que, apercebo-me agora, se transformou no meu forte, no meu porto seguro. Ver o mundo do lado de dentro da janela já não me pesa da mesma forma, e já não me sinto tanto a viver dentro de um aquário desde que me apercebi de que estou demasiado assustada com a ideia de voltar a sair.

Ensinaram-nos o medo.
Ensinaram-nos a refugiarmo-nos nas nossas casas e a desinfetar a nossa própria sombra, não vá o diabo tecê-las: de repente, a perspetiva de um regresso à normalidade, uma normalidade vestida com aspas por tempo indeterminado, não me traz o conforto que achei que sentiria há um mês. Traz o medo.

Há alguns dias que não durmo: ninguém se decide, ninguém avança com a decisão, mas parecem ter todos a expectativa de que o fim do estado de emergência dite a reabertura das clínicas dentárias. E eu acho que não poderíamos começar pior, a confirmar-se, numa altura em que têm de ser dados passos pequeninos até podermos correr grandes distâncias. Parece-me um disparate o regresso a um local onde o perigo de contágio é real, e senti-me obrigada a preparar todo um plano de isolamento para mim mesma. O meu isolamento real começará no dia em que tiver de voltar a trabalhar porque sei que o risco de ficar doente é elevado, e não quero colocar ninguém em perigo - e estou a entrar em pânico por isso.

A incerteza do futuro não me deixa respirar.
Já tinha assumido por aqui o meu desamor pela pela profissão que tenho há quase um ano: nunca fui capaz de gostar, nunca fui capaz de me sentir feliz. E, nos últimos meses, essa não-felicidade tinha começado a transformar-se numa infelicidade e num mal estar geral que me consumia os dias e me devorava as semanas numa pressa constante de viver fora dali, por mais que fossem só dois dias. E aquilo que ninguém ousa assumir, num momento em que se quer que estejamos todos gratos por um regresso, é que estou mais ou menos certa de que voltar, depois de todo este tempo, vai tornar tudo muito mais difícil.

Tenho estado à espera de um milagre: empenhei-me a procurar trabalho, o mais afincadamente possível, numa esperança vã e mais ou menos estúpida de não ter de voltar. De poder chegar ao fim do meu contrato e sair pela porta da frente sem ter de voltar a arrastar-me para lá. Não sou boa no arrasto, não sou adepta do vai-se andando - deixa-me desesperada acordar constantemente com vontade de voltar para a cama, só para não pensar em todas as horas que separam um momento e outro. 

A incerteza do futuro não me deixa respirar porque há uma parte de mim que teme a possibilidade de estar desempregada dentro de um mês, pela não renovação do contrato, e a outra parte de mim teme exatamente o contrário: este é um capítulo que precisa de ser encerrado, mas eu não tenho a coragem de escrever as últimas linhas - temo que possam ser a minha assinatura numa renovação que não desejo, pelo medo de aceitar que nunca vou conseguir sentir-me bem neste lugar e que viver assim nem é bem viver.

[em resposta a alguém que presumo que virá à procura dela: 
raramente sou a primeira a fechar as portas mas, quando o faço, ficam trancadas a sete chaves. a vida foi-me mostrando que há pontas que ficam soltas mesmo. talvez um dia se atem por si, ou talvez não - mas há pouco ou nada no passado que faça questão de trazer para o presente e menos ainda carregar para o futuro. estou a tentar curar o que ainda me dói, e o resto é só isso mesmo: o resto. deixou de me interessar, com toda a honestidade.]

terça-feira, 14 de abril de 2020

o poder das palavras, ou um desabafo tardio para não me esquecer.

Sempre brinquei com a minha sanidade mental, ou com a falta dela, e sempre fiz de conta - mais para mim mesma do que para qualquer outra pessoa - de que tinha tudo sob controlo e conseguiria resolver-me sozinha. Mas estava enganada. Estava enganada e hoje vou escrever sobre isso, porque é importante fazê-lo. Para mim, e para servir de nota para alguém que ainda não tenha chegado lá.

Hoje quero falar-vos da força das palavras, e da forma como temos o poder de mudar a vida de alguém com pouco. Muito pouco. Umas vezes, para melhor. Outras, para um inferno.

Sofri de bullying quando ainda não era fixe sofrer de bullying, ou quando ainda não se tinha arranjado uma etiqueta pomposa para explicar o que acontecia na escola que me fazia chegar a casa e isolar de toda a gente, porque assim era mais fácil fingir que estava tudo bem e era uma miúda feliz, tal como a inocência da idade o pedia. Adormeci a chorar muitas vezes. E, no dia a seguir, repetia o processo.

Para quem for novo por aqui, e ainda não souber, a maior ousadia da minha vida foi ter-me lembrado de vir ao mundo com uma malformação: lábio leporino, um nome tão feio quanto me tenho sentido a minha vida toda. E foi mais ou menos aqui, com este bold move, que os meus problemas começaram. Aparentemente, foi uma má ideia não nascer normal.

Não me bastasse, ainda me lembrei de ser gorda - demorei, mas consegui atingir o patamar da obesidade, para completar o quadro - e os dentes nasceram-me tão tortos, cortesia da malformação, que os centrais faziam um ângulo de 90º. Sem exageros. Em suma, não havia um milímetro do meu corpo que não fosse passível de ser gozado. E, portanto, foi.

Ouvi tudo o que se possa imaginar.
O feia e o gorda eu já tinha como dado adquirido, mas a isso foram-se juntando outras mais, como o nunca ninguém vai gostar de ti!, achas mesmo que alguém vai querer ser visto ao teu lado?, ganhaste o prémio da mais feia da escola, and so on. Primeiro, ouvia isto mas tinha amigos. Depois, esses amigos também passaram a pertencer ao grupo dos que me gozavam. E eu fiquei sozinha.

O secundário foi um inferno.
Ainda hoje me pergunto como saí de lá viva, de tantas vezes ter pensado que raio estaria eu a fazer no mundo: a dada altura, sem nenhum outro motivo aparente além de me ter lembrado de nascer anormal, já não podia andar pelos corredores sem ser gozada. Não podia. Onde quer que fosse,havia sempre alguém a  cochichar, a olhar para mim e a rir-se, ou então a gritar insultos para garantir que eu não iria ficar na dúvida sobre se seria ou não para mim.

A dada altura, comecei a não ir almoçar na cantina e a esconder-me na biblioteca, a refugiar-me nos livros e no blog recém criado, a evitar ao máximo existir além da ficção onde me era permitido sentir normal, e ser apreciada por quem vivia dentro de mim e não pelo corpo feio que o albergava. Até que, mesmo no blog, me comecei a sentir uma fraude - de alguma forma, por algum motivo, comecei a achar que poderia fazer alguma diferença, para quem me lia, o facto de eu não ser normal.

Vivia um inferno, repito.
Nunca quis morrer, mas questionava demasiadas vezes a pertinência da minha existência - tinha uma única pessoa ao meu lado, uma única amiga a quem confiaria a vida, e tudo o resto, a pequena parte que não me gozava, eram pessoas que eu evitava também porque desconfiava de toda a gente e era incapaz de me dar a conhecer, tal era o medo de que se viessem a juntar também à lista de pessoas que me iam torturando lentamente. Não era (só) um feitio de merda, era dor, mas uma dor que eu não queria assumir por julgar ser sinónimo de fraqueza.

Não vos conto isto para que sintam pena, mas para que me entendam: sofri bastante durante aqueles anos. Creio que sofri até mais do que tive a noção na altura, porque eu achava que merecia. Achava que, por algum motivo, tinha alguma culpa por ser diferente, que tinham razão no que diziam sobre mim e que eu teria de me conformar com uma vida de dor e sofrimento, que nunca saberia o que era o amor, que nunca seria mais do que a miúda gorda e feia de quem nunca ninguém iria gostar.

Os anos passaram. 
A única amiga que tinha deixou de o ser também, por motivos que ainda não fui capaz de apurar. E talvez nunca  seja.

Já me cruzei com várias das pessoas que me magoaram, e até fui capaz de sentir que as perdoei, embora não me tenha esquecido. Um por um, não me falha uma cara, não me falha uma memória. E logo eu, que me lembro sempre de tudo. Achei que perdoar era o suficiente. Mas não foi.

Tenho 24 anos. 25, dentro de pouco mais de dois meses.
Já não sou obesa, já não tenho os dentes (tão) tortos. Até já me fiz à vida e conquistei a minha independência (relativa, vá, que não conseguiria se não tivesse com quem partilhar as despesas). Tenho um namorado incrível há três anos. E não superei nada do que me aconteceu lá atrás.

Sou desconfiada, insegura, ciumenta.
Na minha cabeça ainda está enraizada a ideia de que nunca vou ser boa o suficiente, porque sou diferente. Três anos depois, com todas as tormentas que passámos para conseguir ficar juntos, eu continuo a sentir que vou ser trocada a qualquer instante por outra que seja normal. Porque, afinal, nunca ninguém vai gostar de ti. Três anos depois, eu ainda passo a vida a perguntar o que é que os amigos dizem de mim, se alguém comentou, porque ninguém vai querer ser visto ao teu lado.

Estou certa de que nenhuma daquelas pessoas faz a menor ideia dos danos que as palavras me foram causando e da forma como, ainda hoje, ecoam na minha vida. Tornei-me numa pessoa doentia, permanentemente assustada com o medo de perder, e nas últimas semanas comecei a trepar paredes porque a quarentena me deixou com muito, com demasiado, tempo livre para criar os meus próprios cenários dantescos.

Sou assim desde sempre, mas agora consegui tornar a convivência comigo mesma absolutamente insuportável - e, então, tive de assumir. Tive de ser capaz, finalmente, de aceitar que precisava de ajuda. Que, por mais infantil que me faça sentir não conseguir ultrapassar anos e anos de bullying, porque isso parece coisa de miúda mimada, não consegui. 

Isto condicionou todas as minhas relações interpessoais, tornou-me numa pessoa que não quero continuar a ser. Estou cansada de sê-lo, porque é desgastante não conseguir gostar de mim e não ser capaz de ver a pessoa que ele vê, há três anos, e de quem conseguiu gostar apesar de vir com uma bagagem tão grande.

Decidi, finalmente, pedir ajuda profissional - e estou a escrever sobre isto porque importa. Porque precisei de muitos anos para aceitar que preciso dela, que não fui capaz de lidar sozinha com tudo aquilo por que passei, e que não há problema com isso. Que investir na saúde mental não é um desperdício de dinheiro e que não posso continuar a envergonhar-me por os meus traumas incluírem os corredores da escola e eu achar que não faz sentido que ainda me causem mossa quando já atingi o patamar da vida adulta.

Quero ser melhor do que tenho sido até hoje: melhor pessoa, melhor amiga, melhor namorada. Quero despedir-me da ideia de que não valho nada, antes de que tenha de me despedir das pessoas porque tornei a convivência insustentável. Quero ser outra e, acima de tudo, curar-me.

E está tudo bem se não o consegui sozinha. Vai ficar tudo bem.

sábado, 21 de março de 2020

late night secrets

Quatro da manhã.
Poderia ser só o início de uma música pimbó-moderna, mas foi a hora a que decidi dar a mão à palmatória e aceitar que de nada me adiantaria continuar às voltas na cama; às tantas, não fazia a menor ideia se a dor de cabeça excruciante se devia ao facto de não conseguir dormir, ou se era ela quem não me deixava adormecer. Por via das dúvidas, vesti um fato de treino por cima do pijama e saí - senti-me melhor no mesmo segundo em que inspirei o ar gélido da madrugada.

Não sabia para onde ir, e francamente também não queria ir a lado nenhum. Só queria afastar-me das paredes do meu t1 minúsculo que parecem querer sufocar-me. Fala-se muito da quantidade de divórcios que se seguirão, motivados pela quarentena, mas ninguém fala realmente sobre o teste que isto é para as relações: de repente, estamos confinados à nossa casa, a casa que tanto queríamos ter ainda há uns meses, e já não nos podemos ver um ao outro. Vamos dançando entre divisões por ser a melhor forma de evitar o choque, porque eu preciso de alguém para conversar e porque a vida dele, o trabalho dele, não parou. Não ficou em suspenso, como a minha. E parece que já nada bate certo aqui.

As ruas estavam desertas, como seria de esperar. Violei umas quantas regras e sentei-me num baloiço para crianças (N.A.: não, não toquei na cara depois e lavei as mãos assim que cheguei a casa, bem como dei um banho de álcool ao telemóvel), numa nota de felicidade fútil por ainda caber num. Provavelmente, quem ouviu o chiar lento do balançar a meio da noite, julgou que seria só mais um dos takes para o filme de terror que estamos a viver, mas não fui capaz de não aproveitar para me sentir uma miúda outra vez. Do nada, ali, no silêncio, a maior prova da minha liberdade foi poder voltar a sentir-me como se tivesse 5 anos. 

Pensei na minha mãe e no sermão descomunal que me daria se algum dia viesse a saber que fui sozinha para a rua, àquela hora, numa altura em que será demasiado fácil tramar os incautos. E sorri. Sorri porque também estava com algum medo, para vos ser fraca, mas o medo tem sido a palavra de ordem dos últimos dias, das últimas semanas, e chegámos a uma altura em que mais vale sentir medo de algo que nos faça sentir vivos.

Quatro da manhã e um casal observava a minha excursão noturna, estático, da varanda: durante alguns segundos, passaram-me pela cabeça vários cenários, que acabavam todos comigo assassinada, num parque infantil. Mas depois senti só o aconchego de perceber que, afinal, não fui só eu quem perdeu o norte às horas e aos dias. Dois andares acima, está um cartaz preso na janela que diz "Jesus está voltando". Ri-me. Espero que venha para o benfica, então.

Começou a chover. Primeiro eram só meia dúzia de gotitas gordas, mas depois o céu começou a chorar torrencialmente. Eu não: por essa altura já tinha esgotado o stock de lágrimas - entretanto, já reposto - e só me restava o desânimo a arrastar-me rua acima. Não lhe fugi, confesso; também não apareceu o moço para encerrarmos as discussões num beijo apaixonado debaixo da chuva, porque afinal não estamos realmente a viver um filme. Caminhei até ao abrigo do prédio, e deixei-me ficar, só a ver os pingos de água a juntarem-se no chão.

Ouvia-se o chilrear dos pássaros - a princípio, julguei-me louca por os julgar a cantar a meio da noite, mas depois percebi que é um segredo bem guardado da cidade adormecida: afinal, daqui também se ouve o mundo quando se tira o ruído de fundo. E ao longe, bem ao longe, pareceu-me distinguir o canto inconfundível do cuco; lembrei-me da minha mãe outra vez, que sempre disse que, se em março o cuco não vier, morreu ele ou a mulher.

Fico contente por estarem os dois bem.

sexta-feira, 20 de março de 2020

sexta feira, pelo 983879º dia de quarentena

não fiz exercício, não tirei o pijama e, para vos ser franca, nem sequer cozinhei: almocei leite com cereais e há um bocado comi uns restos de sopa. tenho fome, portanto.
também não li nem vi nenhum filme - hoje deixei-me levar pelo medo e entreguei-me, pela primeira vez, às lágrimas. chorei por me sentir sozinha, chorei por não saber quando isto acaba, chorei porque o dinheiro não estica e este mês há de vir bem curto. chorei porque me dei conta de que poderei vir a ficar desempregada nos próximos meses e, por mais que não goste do meu trabalho, paga-me as contas ao fim do mês, e não vai ser tão simples assim encontrar outro depois de tudo isto. chorei pelos planos que necessitam de ser adiados para depois, para quando houver dinheiro, ou para tempos mais estáveis. e chorei até pela falta que me faz ver a minha família, que já vai para duas semanas desde que lhes pus a vista em cima.

pode ser que amanhã seja melhor, que cozinhe uma refeição decente, que saia do quarto, que chore menos.

este não é o relato mais bonito, mas é necessário porque estou capaz de jurar que não serei a única a sentir-se assim, e é preciso não fingir que isto está a ser divertido e estamos todos a ser muito produtivos; há dias que estou com uma dor de cabeça que mal me deixa abrir os olhos e falta-me o ar muitas vezes porque tenho tido crises de ansiedade avulso. 

aguardemos por relatos mais felizes.

terça-feira, 17 de março de 2020

do tempo.

Foi há precisamente um mês que voltei aqui, cheia de boas intenções de não deixar o gosto pelas palavras fugir-me outra vez - mas depois voltou a faltar-me o tempo, e a energia, e a vontade, e a imaginação. Até que a vida ou o mundo nos trancou em casa. Falemos do tempo, então.

Quando deixei de (vos) escrever, tinha acabado de aceitar o meu atual emprego e, por me deslocar em transportes públicos, passava mais de 12 horas por dia fora de casa. Durante a semana, não existia para mais do que trabalhar, comer, tomar banho e ir para a cama novamente - pelo meio, tentava manter-me acordada o tempo suficiente para continuar à procura de um trabalho fora dali. Aos fins de semana, única altura em que conseguia ver o monsieur, tinha de encontrar tempo para fazer tudo o que tinha de ser feito, e para viver, finalmente, vingando todos aqueles outros dias em que me arrastava numa semi-existência.

Até outubro.
Em outubro embarquei na primeira grande mudança da minha vida quando vim viver com o monsieur, e achei que iria retratar o momento em palavras, para me lembrar exatamente do que estava a sentir. Pensei que iria querer falar-vos sobre como ninguém nos lembra de que temos de comprar um piaçaba ou de quão crucial parece ter de decidir de que lado da cama iríamos dormir ou em que gaveta iriam ficar as meias. Mas, mais uma vez, a mudança foi uma loucura, e o tempo pareceu-me sempre curto demais para refletir sobre ele.

Então, quando iria ter mais tempo livre, comecei a correr; tinha estado sedentária durante meses, sentia-me péssima em relação a isso e parecia-me um crime não aproveitar a oportunidade de correr com o mar mesmo ao lado. E fui. Do oito ao oitenta em menos de nada: passei de sedentária a correr quase 40km por semana.Todas as semanas, com chuva, com sol,com vento, com nevoeiro. Doente. às sete da manhã ou às dez da noite. Esta lontra leva-se bastante a sério, é preciso que se note.

Isto para explicar que, mesmo quando começou a parecer que o dia tinha muitas mais horas para me oferecer, eu ocupei-as todas também. Era a corrida, e o jantar que já não aparecia feito na mesa ou as compras para fazer. E quando o tempo me sobrava, era para me entregar a um livro ou a uma série, porque sempre dá menos trabalho do que ver surgir no ecrã as minhas próprias palavras.

Entretanto, vieram as dores: primeiro o pé, depois a anca. Inicialmente, ignorei-as - por mais de um mês para vos ser franca. Sentia-me tão bem a correr, ajudava-me tanto a aliviar as dores não físicas, que me custava parar - até que, em meados de janeiro, fui obrigada a assumir que não poderia continuar assim porque começava a afetar a minha capacidade de me manter em pé no trabalho. E parei.

Poderia até ter aproveitado esse momento para voltar ao blog, mas a necessidade de não ter tempos mortos ou de reflexão venceu sempre: inscrevi-me no ginásio. E fiquei meio que obcecada com isso.

Planeava ir três vezes por semana, mas fui sempre seis: descobri que melhorava muito o meu humor se começasse o meu dia a treinar, então comecei a ir sempre às 7h30. Todos os dias, menos ao sábado, que ia quando me apetecia. Noutros dias, se estava sozinha e com tempo de sobra, voltava a ir ao final do dia porque gosto de algumas das aulas de grupo.

E assim, voltei exatamente ao mesmo ponto: faltava-me tempo, porque no pouco tempo livre que tinha, extra necessidades, extra obrigações, aproveitava para não fazer porra nenhuma já que tudo o resto me levava a energia.

Até que chegámos aqui.
O ginásio está fechado, a clínica onde trabalho está fechada, os supermercados são para evitar. Não posso sequer ir correr no paredão, e o mais perto que estive de um passei foi sair de casa para ir ao lixo.
Hoje, o tempo que tantas vezes me tem parecido curto, sobeja - e ninguém parece lembrar-se de todas as vezes que implorou para que este momento chegasse, para termos mais tempo para dormir, para estar no sofá, para pôr filmes e séries em dia, para tirar tirar aquele livro cheio de pó da prateleira.

No fundo, por mais que o queiramos, não sabemos lidar com ele: é mais fácil andar num corropio constante sem pensar muito nisso, do que estar parado - deixem-me que vos diga que, em seis meses, esta foi a primeira vez que me dei ao luxo de trazer o computador e o café para a mesa da varanda, e escrever. E sabe bem, porra: juro-vos que parece que recuei uns anos no tempo, e que não há quarentena nem vírus nem qualquer catástrofe eminente acontecer fora daqui. 

Por isso, vou andar por aqui: talvez ninguém se vá dar conta, talvez ninguém queira ler, mas não faz mal. Estou em casa.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

cinderela, por onde andas?

Há semanas que decidi que iria voltar aqui, e há semanas que adio também essa decisão. Uma parte de mim acha que escrever talvez me devolva aquela parte de mim que parece ter sido arquivada num sotão bafiento, ao lado das bonecas de porcelana e dos naperons de renda que ninguém quer - outra parte de mim teme ter perdido essa capacidade de dar voz aos sentimentos. Mas aqui vamos nós.

Estou cansada.
Estas talvez sejam as palavras mais simples e mais verdadeiras, capazes de justificar a minha ausência: estou cansada porque vivo a correr, não literalmente nem tão pouco por escolha, mas porque me parece sempre que viver no futuro é mais fácil do que estar no presente. E sinto-me sempre esgotada de nunca estar em tempo algum.

Às segundas, estou ansiosa pela sexta. Sinto que passo pelas semanas como quem enfrenta a descida mais íngreme de uma montanha russa: de olhos fechados e a suster a respiração. Volta e meia, dou por mim a abri-los a meio de um looping e a gritar para me deixarem sair deste carrocel. Só que é este carrocel que me paga as contas ao fim do mês.

Creio que foi isto que me fez desaparecer em primeiro lugar: depois de uns tempos desempregada, parecia-me injusto, e bastante ingrato, demonstrar que não estou feliz a fazer o que faço, um emprego meio que caído do céu - e demorei nove meses, uma gestação inteira, a ganhar coragem para escrever sobre isto. 

Também estou perdida, além de cansada.
De certa forma, vendem-nos a ideia de que aos 17 já teremos tomado uma das maiores decisões das nossas vidas, que já acertámos contas com a verdadeira resposta ao o que queres ser quando fores grande?,e que é suposto não termos dúvidas. Não aconteceu comigo: aos 21, percebi que o meu sonho de infância era um pesadelo e estava muito longe de ser o caminho que eu queria seguir. 
Aos 24, ainda não o encontrei.

Sinto-me quase envergonhada por ter de assumir que não sei o que quero fazer com a minha vida. Tenho uma ideia, claro - mas não sei como lá chegar porque nenhum caminho me parece curto o suficiente, nem caber na minha carteira. Então, na maior parte do tempo, sinto-me encurralada, condenada a empregos que me façam sentir na pele que não fui capaz de ir mais além, todos os dias. A sentir que nunca terei um papel suficientemente importante, seja onde for - e tudo o que mais faça nunca será suficiente.

Já tive a sorte de trabalhar em algo de que gostava verdadeiramente de fazer. Algo que me fazia acordar tão contente à segunda feira quanto estava à sexta à tarde: e o que só aprendi depois, é que é impagável e difícil de encontrar. Para vos ser franca, acho que nem sequer soube valorizar a sorte que tive, antes da ameaça de falência me ter deixado fora de jogo - e, durante todo este tempo, tenho andado à procura dessa sensação.

Desapareci porque estou cansada, e voltei pelo mesmo motivo: não posso continuar a viver só dois dias por semana, muito menos a fingir que não faz mal que assim seja.