Lembro-me bem dela. Melhor dizendo, nunca a esqueci.
Costumava vê-la passar, sempre com aquele ar de quem não queria saber de nada, de quem não se importava com o mundo mas, ainda assim, amava viver. Estivesse a minha visão tão nítida como a minha memória, e ainda havia eu de ser um grande homem nesta idade... mas lembro-me tão bem dela, céus, chega a doer-me. Tinha aquele ar desalinhado de quem sabe o que quer mas parece andar sempre à deriva e parecia não se cuidar, não se preocupar minimamente com o que aparentava mas, ainda assim, estava sempre perfeita. Ou era eu quem a via assim. Sentia por ela uma espécie de adoração anónima que não saberia explicar a mim mesmo, se ousasse confessar que não podia viver sem aquela rapariga.
Certa vez, tive de o admitir. Vi-a a chorar e, de repente, o olhar dela que sempre pareceu querer roubar-me a alma quando pousado em mim, fez sentido. Não estava ela senão a pedir ajuda, a pedir que alguém a libertasse dela mesma, dos demónios interiores que a consumiam mais e mais a cada dia. E eu quis tanto levantar-me e abraçá-la. Não falar - acredito na linguagem dos corpos, acredito que diria mais calado. De nada me adiantaria continuar a mentir a mim mesmo quando o meu corpo pedia por ela, e só não culpo o coração porque sei que o pobre é uma vítima das artimanhas do inconsciente. Contudo, não consegui levantar-me. O rasto negro que a minha menina deixava atrás de si, dizia tudo dela, e eu não tive coragem de a seguir e de lhe pedir que sorrisse. Lembro-me tão bem do sorriso dela, meu deus.
Um dia, já estava cansado de me esconder por detrás da indiferença que não sentia, e escrevi-lhe uma carta. Disse-lhe o quanto ela me parecia especial, o quanto era fácil apaixonarmo-nos por ela, o quanto eu queria que ela soubesse que dava tudo para ter alguém como ela. O quanto a queria, por assim dizer. Ainda assim, já de carta escrita e sentimentos no auge, não consegui enviá-la. Tive um daqueles momentos decisivos porque toda a gente passa na vida, aquele faço não faço, digo não digo, e, soube-o mais tarde, cometi o maior erro da minha vida. Deixei a carta perdida num livro que pensei oferecer-lhe.
Não sei precisar o tempo que passou, mas sei que não foram mais de três meses, quando voltei a pegar naquela carta. Ia vê-la nessa noite, na inauguração de um restaurante de um amigo nosso. Olhei-me no espelho e convenci-me de que seria a derradeira oportunidade. Meti a carta no bolso e fui.
Quando lá cheguei, ela estava de costas a conversar com uns amigos. Não consegui aproximar-me deles. Sentei-me numa cadeira ao fundo da sala e fiquei a vê-la de perfil, sempre tão leve como se o mundo não lhe pesasse nas costas, sempre tão ela. De repente, ela virou-se. Lembro-me tão bem desse momento! Ela virou-se e, nessa altura que eu não acreditava no amor, soube-o; soube que, se fosse possível amar alguém mais do que a qualquer coisa num segundo, se fosse isso o apregoado sentimento, então o meu momento era aquele. Eu amava aquela rapariga que não era mais para mim do que um mistério. Levantei-me com a mão no bolso, pronto a entregar-lhe a carta que mudaria os nossos destinos.
Porém, as histórias de amor verdadeiro nunca acabam bem. Quando estava a uns escassos metros de a alcançar, ele agarrou-a pela cintura. Estavam juntos. Ela e aquele rapaz que eu não conhecia, tão mais bonito do que eu, estavam juntos. Quem estava em pedaços era eu. Ele nunca a saberia amar como eu, que tão recentemente tinha descoberto o amor e já estava na certeza de que nunca amaria ninguém assim.
E tinha toda a razão. Agora, ao fim de mais de 50 anos, ninguém me tira da ideia de que, se não fosse a minha cobardia na hora de enviar a carta, a minha menina podia estar aqui comigo, sentada ao meu lado, neste banco de jardim onde se fixam os velhos, quem sabe se não todos a pensar no amor que perderam, tal como eu. A vista já anda fraca, mas hoje ela passou por aqui e eu tive a certeza de que era ela. A minha menina é agora uma mulher, de rosto marcado pelo tempo, mas com o mesmo olhar, com o mesmo sorriso. Com a mesma paixão desinteressada pela vida. E o perfume - céus, aquele perfume inebriante! Ninguém me poderia dizer que não era ela, eu sei que era. Vinha de preto, a minha menina. Ouvi uma mulher comentar que tinha enviuvado há pouco tempo, o que não duvido. Quando passou, deixou o mesmo rasto negro de outrora e a mesma angústia de sempre. Tivesse eu entregue a carta, e ela não estaria viúva agora. Não. Se a minha menina tivesse sido a minha mulher, estaria aqui agora, sentada ao meu lado. Os dois velhos, os dois no fim da linha, mas vivos - porque com ela eu seria imortal, tal como o meu amor.
4 comentários:
Porra isto é enorme... desculpa, mas hoje não consigo. :|
Não tens de pedir desculpa, aposto que houve muita gente a não ler quando viu o tamanho xD
Afinal sempre li :)
Não deve haver arrependimento pior do que arrependermo-nos do que deixámos por fazer.
Lá está, acredito que não :|
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