Quase nunca entro em cemitérios - sei que não vou encontrar lá quem procuro, nem tão pouco me confortam as pedras frias, dessas que ostentam a fotografia de quem perdemos. Não que me seja indiferente - prefiro essa ideia, ainda que mórbida, de que quem amo está ali, reduzido a um corpo apodrecido lentamente devorado por bichos, reduzido a ossos, reduzido a nada, do que à não-existência definitiva da cremação. Mesmo que não o possa ver, mesmo que não o possa tocar - sei que, algures, uns palmos abaixo, está o que resta de quem se foi. Que ainda existe. Que ainda é.
Quase nunca entro em cemitérios, mas hoje entrei. Pode parecer loucura mas, volta e meia, ainda me torturo para me tentar lembrar do que disse antes de sair do quarto, na última vez em que vi o meu tio. Ele já estava meio inconsciente, mas - e disso eu lembro-me bem - reconheceu-me, apesar de já não se conseguir lembrar de quase ninguém. Reconheceu-me e voltou-me a contar a mesma história que me contou vezes e vezes sem conta, de um dia em que, aos dois ou três anos, o fiz chorar a rir. E naquele dia, lembro-me de também ter tido vontade de chorar, ao ouvi-lo contá-la, já de olhos fechados, já de voz ténue, já quase sem fôlego. Ele estava-se a ir aos poucos, e eu acho que sabia disso. Só tenho pena de não ter tido as ideias suficientemente arrumadas para ter percebido que seria a última vez que ele se riria com aquela história. Eu devia ter percebido, devia ter-me despedido em condições.
Como é que é suposto despedirmo-nos de alguém que não voltaremos a ver? Não sei. Mas estou certa de que não o fiz bem. De que devia ter sabido demonstrar o quanto me iria custar perdê-lo, mesmo que a doença talvez já nem o deixasse percebê-lo. Para ser franca, ele não era meu tio, nem partilhava comigo qualquer gene - era o marido da minha tia-avó. Não partilhávamos apelidos, mas partilhámos dias, anos. Ele ensinou-me tanto, mesmo calado, que eu nunca lhe poderia explicar a falta que me faria - gostava dele como se fosse meu avô, e ele considerava-me a neta mais velha. Acho que ele sabia disso, mas gostava de lho ter dito a tempo.
Não me lembro de como me despedi dele em vida, mas lembro-me do único momento em que chorei no funeral - tal como todos os outros netos, meti-lhe uma rosa branca em cima do caixão. Um dos meus avôs tinha acabado de morrer. Faz hoje três anos.
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