Hoje, lembrei-me do joão - ainda me custa crer que cheguei a um ponto em que, de facto, me lembro dele esporadicamente, em intervalos cada vez mais longos, e ele deixou de fazer parte dos meus pensamentos constantes. Deixou de ser o que sempre foi: o meu joão.
Demorou anos; o joão foi a grande paixão platónica dos meus dezasseis anos. Continuou a sê-lo até aos dezoito e, de alguma forma, eu acreditei que ele o seria sempre. Nunca o defini como o grande amor da minha vida, como é hábito entre a maioria das miúdas dessa faixa etária, mas estava mais ou menos convencida de que, passasse o tempo que passasse, ele ia ser sempre aquele se na minha vida. Aquela pessoa que, por mais que eu conseguisse ser feliz com qualquer outra, conseguiria fazer-me ainda mais feliz, ainda mais completa. E nunca nada seria igual com qualquer outra pessoa.
O joão era obcecado por mim e eu era obcecada pelo mistério que o envolvia; queria compreender o que lhe passava pela cabeça, queria sabê-lo de cor e salteado. Queria decifrar o que acontecia por trás daquele que, ainda hoje, sou capaz de jurar que foi o olhar mais intenso que eu algum dia vi; e eu adorava isso, como sempre. Adorava porque me complicava a vida, porque me roubava a monotonia, porque me ia doseando a alegria e a tristeza em partes desiguais mas, ainda assim, era o que eu queria. O joão era o inferno que eu queria para mim e eu estava disposta a ser uma tormenta tão má ou pior ainda do que ele; mas ele nunca valeu o esforço.
Devo-lhe aquele ataque de vinte segundos de coragem louca; foi a primeira vez que eu fiz realmente alguma coisa por mim própria, que investi no que sentia em vez de me esconder em sombras por me achar pouco merecedora de todo e qualquer sentimento. Foi a primeira vez que meti o medo de lado e decidi ir atrás do que eu queria. Fazer, enfim, também na parte sentimental aquilo que fazia com tudo o resto: o que me apetecia.
Não correu bem e o mistério aumentou. Em tempos, achei que o joão tinha sido a minha primeira ferida profunda, mas agora, à luz do tempo, percebo que foi só um arranhão que não chegou sequer a sangrar; foi um primeiro passo na luta por mim mesma e pela perda do medo. E ele continuou a ser o meu joão e continuou a fazer-me sentir inferior, pouco merecedora da atenção dele, pouco pessoa para um deus daqueles. Ele tão bonito e eu sempre a feia gorda. Sempre a burra. Sempre a que não valia nada. Sempre. E então eu recuava porque não valia a pena e voltava a avançar porque ele mostrava que sim.
Passei três anos da minha vida nisto e a acreditar que um dia ainda havia de dar certo. Mas, entretanto, cresci e percebi que afinal não sou pior do que ele só porque ele é mais bonito. Descobri que a personalidade não assenta bem naquele corpo. E vivi outras histórias, conheci outras pessoas; passou pouco mais de um ano desde que o meu joão começo a deixar de o ser, mas já vivi mais e melhor do que em todos os outros anos da minha vida.
E, enfim, o joão transformou-se exatamente no que sempre foi: uma paixão platónica que me fez crescer e que, apesar de guardar com carinho, está mais do que encerrada. Hoje, lembrei-me do meu joão - mas, afinal, já não importa. Passou muito tempo desde a última vez em que ele me conseguiu acelerar o coração.
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