quarta-feira, 5 de março de 2014

insónia

Naquele dia, ele acordou tarde; os estores estavam ainda corridos e no ar não havia o aroma a café acabado de fazer, comum a tantas outras manhãs - ela foi-se mesmo embora, pensou. Era o início de uma nova vida.

Levantou-se de um salto; ainda não conseguia decidir se estava a viver o maior dos seus sonhos ou o pior dos seus pesadelos. Ela tinha-se ido mesmo embora, tal como dissera mil vezes antes que faria. Ele nunca acreditou, claro - onde iria ela? Ele era tudo o que ela tinha. Mas ela foi-se mesmo e era ele quem estava perdido.

Quando entrou na sala, teve de piscar duas vezes os olhos para tirar da cabeça a ilusão de que o sofá ainda conservava a forma do corpo dela deitado, como se ela tivesse acabado de se levantar e ainda fosse possível sentir o calor dela naquelas almofadas. Chegou mesmo a olhar à volta, expectante, porque estava capaz de jurar que lhe sentiu o perfume. Devia estar louco. Só podia estar louco.

Ela era obcecada com regras. Queria as coisas todas no lugar, queria tudo certo, era incapaz de se atrasar um minuto que fosse, nada de música alta, tudo tinha de ser equilibrado e perfeito - enfim, era uma dessas pessoas que apertam a pasta de dentes deste o fundo porque não gostam de a ver amachucada. Naquela manhã, ele podia fazer o que quisesse; deixou no player um álbum completo dos black sabbath que ela sempre odiou, no máximo, e foi tomar banho.

Fez de tudo para ignorar a estranheza de não encontrar mais do que um frasco de champô e um sabonete meio gasto, quando era hábito picá-la por usar todas aquelas coisas que ele nem sabia ao certo para que serviam - mas não lhe bastava o cabelo lavado? -, tentou ignorar o facto de a casa lhe parecer mais vazia do que no dia em que a compraram juntos, desprovida de qualquer móvel. E no fim, tentou vingar-se dela; atirou a toalha molhada para cima da cama, deixou a roupa espalhada pelo chão e nem sequer descarregou o autoclismo. A ideia de a irritar, animava-o - ou animou-o até ele se ter apercebido de que ela nunca descobriria. Ela já não queria saber.

No dia em que ela se foi embora, ele disse-lhe que nunca tinha gostado realmente dela. Que só a tinha usado pelo dinheiro. Mentiu. Ele convenceu-se desde o primeiro dia de que era essa a razão porque nunca se permitiu a assumir-se apaixonado. Achou sempre que isso era coisa de outros, não dele, que nunca deixaria que mulher nenhuma o destruísse - tão inocente. Não compreendia nessa altura que não se tratava de deixar ou não deixar, que isso de se estar apaixonado era pior do que uma doença contagiosa que ninguém conseguia controlar. E então, aprendeu a mentir a si mesmo. Que era pelo dinheiro. Que era pelo sexo. Que era pela companhia. Nunca foi.

Percebeu-o nessa manhã quando foi preparar o pequeno almoço - tirou distraidamente as duas canecas do armário, como sempre, e pousou-as em cima da mesa. Frente a frente, como sempre. Depois sentou-se, incapaz de pensar sequer em comer o que quer que fosse; não percebia porque raio estava a infligir aquela dor a si mesmo, porque razão tinha tido a ideia de se torturar ainda mais - e foi nesse lugar da cozinha, com o sorriso da caneca dela como que a observá-lo deleitado, que ele deixou cair a cabeça sobre a mesa e começou a chorar como nunca se lembrava de ter feito.

Partiu a caneca. Ela não iria voltar.

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