Há um encanto especial nas cidades adormecidas - é como se estivessem a respirar, a renovar, a preparar para mais um dia de longas passadas e do ruído silencioso de todas as vozes quase nada dizem. E eu apaixonei-me por ela assim, vazia, escura, silenciosa.
Faço de propósito; dou uns minutos desde que o comboio pára até que me decido a sair, só para dar tempo à multidão para se dispersar e me devolver a solidão destas manhãs frias em que enterro as mãos nos bolsos e me deixo ir, em passo lento e desacertado, numa cidade que parece minha de tão oca que está. E é mesmo um bocadinho minha, tal como o é de todos os eternos apaixonados porque são os únicos que a vêem como é.
Gosto de variar nos trilhos, de trocar as voltas à rotina, de andar por onde calha; pergunto-me muitas vezes quantas histórias não contarão aquelas esquinas, quantas discussões não estarão cravadas na alma de cada parede, quantas gargalhadas não ecoarão ainda nas ruas. Quantas lágrimas não se terão escondido nas pedras da calçada que agora piso, indiferente a todo o sofrimento alheio que um dia ali ficou gravado.
Vaguear pela cidade transformou-se no meu prazer secreto e solitário - nunca ninguém se apercebeu de que chego tão cedo de propósito, porque encontrei o amor na penumbra a sós comigo mesma, antes da enchente, antes da cidade se mascarar de novo; passo por todos os locais que me parecem impossíveis de tão diferentes que ficam antes de amanhecer. A esquina onde uma cigana vende cuecas todos os dias. A rua onde três sem abrigo drogados, mal cheirosos e estrangeiros empatam as pessoas. A outra rua onde um falso cego pede esmola enquanto observa quem passa. A praça onde ainda se vendem castanhas quentinhas. E, invevitavelmente, o rio onde volto sempre que perco o rumo e onde me sento à espera de um dia também eu conseguir atracar num porto seguro em vez de andar sempre à deriva. Mas este é só mais um dos muitos sonhos que ficam pelo caminho - e só mais um dos segredos que esta cidade encerra.
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