Bebeu demais e perdeu a noção de tempo e de espaço. Caminhava agora, lentamente, em direção a casa, mas não o sabia ainda. Faltava-lhe aproximar-se do jardim para que zazu, o cão, lhe saltasse para cima e ela descobrisse que era ali o final da viagem.
Sentou-se no alpendre. As quase duas horas de caminhada, ainda que ela não faça ideia do tempo que andou, deram-lhe a oportunidade de se recompor o suficiente para voltar a si. E quem lhe dera não o ter feito! Zazu lambia-lhe as mãos, claramente feliz por a ver. Enquanto lhe afagava o focinho, deu por si a chorar. Aquelas lágrimas que só surgem em momentos inesperados, como este, em que tudo parecia ter corrido bem, até ela se ter lembrado do que estava mal. O choro dela era agora descontrolado, complementado com soluços sonoros.
Ninguém deu por ela ali, deitada no chão do alpendre, com o cão a lamber-lhe as lágrimas. Sentia-se só, e nem sabia explicar porquê. Diriam vocês que eram efeitos do álcool, e não nego, ainda que com a nota de que a única contribuição deste, foi para a sua libertação. Finalmente, chorava sem medo. Chorava por tudo, e perguntava a si mesma, ainda que baixinho, que mal teria ela feito a esse deus, se é que ele existe, para que ele lhe tivesse dado tanto azar na vida. De repente, o múrmurio deixou de o ser. Deu um grito que rompeu a noite e fez a persiana da casa em frente se abrir. Estava desesperada.
Lembrou-se subitamente da chave suplente debaixo do tapete da entrada, e resolveu entrar. Só aí se apercebeu dos pés ensanguentados, fruto da longa caminhada que ela não se lembra de ter feito descalça. No hall, o espelho mostra-lhe a sua figura; despenteada, de maquilhagem esborratada, vestido rasgado. Sentia-se nada. Pior que nada. Ela era nada. Queria partir o espelho, mas sabia que não valia a pena, porque ela continuaria ali, e continuaria a existir uma sombra para lhe mostrar o que ela não queria ver.
Odiava-se. Quando pensava em si em todos aqueles anos de existência, não se lembrava de uma única vez se ter achado bonita ou interessante, e cada vez mais lhe davam mostras disso. Odiava-se. Odiava aquele corpo e daria a sua vida atual de boa vontade, se soubesse que existiria a hipótese de se ver nascer diferente. Mas, desta vez, com uma diferença boa.
Atirou-se para cima da cama. Tinha o cabelo emprestado em cheiro de tabaco. Tinha começado a fumar há pouco tempo; não por prazer, mas por saber que lhe fazia mal. Agradava-lhe essa ideia de um suicídio lento, inicialmente indolor, quase, quase prazenteiro. Queria matar-se, mas não tinha coragem para morrer.
Tomou uma decisão. Estava à beira do abismo e sabia que preferia atirar-se a deixar-se cair lentamente. Era então hora de tomar balanço. Pegou então num papel e numa caneta e começou a escrever cartas de despedida para todos; até para o rapaz a quem ela teimava tratar por homem, ainda que fossem da mesma idade e ela não se considerasse nem perto de ser mulher. Depois de muito escrever, apagou tudo e começou de novo.
Esteve assim até que amanhecesse, e só faltasse a carta de despedida para ele. Por mais que tentasse, não conseguia que as palavras lhe parecessem coerentes, suficientes, justas. Há sempre mais um bocadinho a dizer quando gostamos muito de alguém, não é?
Quis tentar inverter o jogo a seu favor. Já que ia morrer, queria deixar-lhe a dor, queria usar as palavras como lâminas. Pegou então numa foto dele, e limitou-se a escrever na parte de trás tenho estado a tentar dizer-te que te amo, mas nunca me quiseste ouvir. talvez me queiras ouvir agora, que me encaminho lentamente para a morte que me fizeste desejar. adeus.
Sabia que estava a ser injusta e, em última análise, infantil. Sabia que ele pouco tinha a ver com as razões que a levavam a querer suicidar-se, mas não conseguia, deixar de querer que alguém sentisse de facto a dor da sua perda. Nem que para isso tivesse de recorrer a algo assim.
Depois de abandonar as cartas em cima da cama, saiu de casa. Uns ainda dormiam, outros já tinham saído. Ninguém deu por ela.
Pensou no óbvio e encaminhou-se para a estação. Nada seria mais rápido e, quem sabe, menos indolor. Foi nesse curto percurso que lhe separa a casa da estação de comboios em que, caro leitor, aconteceu o óbvio e o inevitável; filipa teve aquele flashback a que tão bem nos habituaram os filmes, e compreendeu que não queria de facto morrer, queria parar de viver, e esta antítese não significa que uso morrer e deixar de viver necessariamente como antónimos. Ela só queria parar. Queria que tudo parasse. Queria organizar as ideias devagarinho, até que pudesse voltar a querer viver.
Ainda assim, não se desviou. Continuou na mesma direção. E chegou mesmo antes do comboio, o que a obrigava a decidir rápido. É aquela parte em que, se eu conseguisse que isto fosse uma história bem construída e minimamente interessante, vos deixaria a questionar-se se a filipa teria ou não morrido, e vos deixaria com pressa de ler o fim. Bom, voltemos à filipa; quando o comboio se começou a aproximar da estação, ela precipitou-se em direção à borda da gare, pronta a atirar-se no último momento. E, confesso-vos, eu ia mesmo matar a filipa, mas a esta hora quero um final feliz, só para dormir mais descansada. Ainda que isso implique encher-vos de clichês.
No último momento, no derradeiro momento - zás - era ele. Rui puxou-a por um braço e aninhou o corpo dela contra o seu. Abraçou-a como nunca ninguém antes a tinha abraçado. Nesses momentos, ocorreu a filipa a maldade que tinha feito naquela manhã, que rui nunca poderia ler aquela mensagem por detrás da sua foto, quando afinal foi ele quem a salvou.
Quando o comboio se foi embora e rui se sentiu à vontade para a largar, estava a chorar. Ela estava demasiado fraca para perguntar porquê, e só agora se deu conta de que também ela chorava. Quase, começou ele, quase que te perdia sem te ter deixado saber. O quê?, perguntou-lhe ela. Eu amo-te. Desde sempre.