segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

para sempre

Quando perdemos alguém, começamos a contar o tempo ao contrário para nos enganarmos a nós próprios - inventam-se comemorações, datas significativas, registam-se as últimas vezes no calendário. Talvez seja ridículo para quem assiste de plateia a esta tentativa frustrada de prolongar as memórias, mas faz todo o sentido para aqueles a quem as recordações são tudo o que lhe resta.

Passei o dia a adiar a hora da despedida. Estiquei os minutos até ao fim, contive-me o mais que pude, menti a mim mesma uma e outra vez. Convenci-me de que seria capaz de simplificar: não era um adeus, era um até já agendado para maio, não havia motivo para dramatizar Mas havia. 

Sentei-me na mesma cadeira de sempre e fiquei a vê-la andar pela cozinha. Desabafava sobre o quanto lhe custava deixar a casa dela, e eu tentava esconder o quanto me custava deixá-la ir - confesso que havia uma certa dose de egoísmo em mim. Não queria que ela fosse, apesar de ser o melhor para ela: tinha medo de a perder lá, tão longe de mim, quando eu estava tão habituada a tê-la perto. Não me restam dúvidas de que me doeria vê-la definhar - mas dava tudo por ter aproveitado cada segundo que lhe restava. Com ela.

Abracei-a, por fim. Voltei para trás para a abraçar novamente de cada vez que me tentava ir embora - um ano depois, não sei dizer se sabia que era a última vez que a via, mas acho que não. Temia-o, mas estava em negação: custava-me crer que se lhe pudesse esgotar a energia e a capacidade de lutar contra o filho da puta do cancro. Não queria acreditar que a podia perder. Mas podia, claro que podia!

Da última vez que a vi, ela não olhou para mim - para evitar uma nova dose de lágrimas e de soluços, saíu de casa cabisbaixa para se despedir da vizinha. Lembro-me bem do aperto que trazia no peito - chorei durante horas nesse dia. Chorei a noite toda. Uma parte de mim, estava assustada e com medo de a perder - a outra parte fazia-se de forte e não acreditava. Maio. Maio era já ali. Ela tinha de aguentar até lá - nas horas de desespero uma pessoa apega-se até ao deus no qual não acredita.

Entrei em contagem decrescente nesse dia - queria adiar a derradeira despedida, queria acreditar que tinha tempo para outros abraços, para mais um par de memórias para levar para a posteridade, mais dela. Não tive essa oportunidade - num último golpe irónico, a morte roubou-ma a escassas horas de nos encontrarmos. E, depois de meses de espera, era isto: foi por um triz. Por uma unha negra.

Não me sai da cabeça que estava para viajar no dia anterior; não o quis fazer porque não queria faltar mais um dia às aulas, porque achei que isso era importante. Não me sai da cabeça que, se o tivesse feito, ainda a teria visto - e nunca consegui calar em mim a culpa e a falta que me fez essa despedida. A verdadeira, a derradeira, como se eu algum dia fosse ficar satisfeita. Como se essa fosse a resposta - não há uma maneira possível de nos despedirmos de alguém que vamos amar para sempre.

Faz hoje um ano que me despedi dela. E faz hoje um ano que comecei a sentir saudades também.

*o post, apesar de se referir à despedida, só foi escrito semanas mais tarde.

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