sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

a vida e a morte em círculos

Mais do que uma vez, as pessoas olharam-me como se fosse louca quando lhes falei, com deleite, das minhas peripécias no hospital. Diziam-me que não seriam capazes, que não se imaginavam em tal sítio, cheio de desgraças e de doenças e de lágrimas. Eu via outra coisa: via recuperação, superação. Via amor impresso em olhares cheios de preocupação, em dedos enlaçados com a força de quem não quer ver alguém partir. Vi a morte, sim, algumas vezes. Vi coisas mais ou menos feias - e adorei cada uma delas porque lhes sentia a efemeridade. Sabia que, se tudo corresse bem, seria algo transitório e um dia não seria mais do que uma má recordação.

Por outro lado, sempre disse que não me imaginava a trabalhar num lar. Disse, aliás, que se não pudesse trabalhar no hospital, preferia uma caixa de supermercado a um lar. E, ainda assim, tentei; quis saber se não passaria de um capricho, se não seria ainda melhor. A minha aventura durou três dias e serviu para perceber que tinha razão desde o primeiro instante.

Os lares conseguem ser mais mórbidos do que os hospitais. A vida acontece em círculos pontuados por uma morte ou outra que, no fundo, significam apenas inquilinos novos: aquelas pessoas passam os dias ali, à espera do último dia. As rotinas repetem-se, dia após dia, sem que nada de novo aconteça; o lar transforma-se na segunda casa de cada uma das funcionárias, e os idosos passam a ser como os filhos. É preciso cuidá-los, levá-los à casa de banho, limpar a casa, garantir que estão bem. E, na maior parte do tempo, não acontece absolutamente nada: o tempo esquece-se de passar dentro daquelas paredes, certamente numa última tentativa de enganar a morte. E o azar de um será sempre a sorte de outro: uma cama nunca demora muito a ser preenchida. Há sempre alguém à espera de uma baixa.

Não há esperança de recuperação. O lar é a espera fatal: no dia seguinte, se não estiverem iguais ao anterior é porque estão piores ainda. A ideia não é deixá-los melhor para poderem ir ter com a família porque, na realidade, a família depositou-os* ali, às mãos de terceiros, para que deixem de ser um problema seu até que morram. Entristece-me, revolta-me - é uma realidade mais dolorosa do que qualquer hospital. É uma espera mais injusta, mais triste, mais solitária, mais desamparada - tenho todo o respeito por quem consegue suportar o trabalho de um lar porque, se é preciso coragem para trabalhar num hospital, é precisa muita mais coragem para aguentar assistir de camarote ao perecimento dos corpos que um dia foram tão cheios de vida e de sonhos quanto os nossos.

*quero deixar claro que não vejo os lares como um depósito e que acho que é o melhor que qualquer família, que não possa tomar conta de um idoso, tem a fazer - refiro-me a casos que conheço de perto, de pessoas que foram deixadas no lar e não recebem qualquer visita.

2 comentários:

Anónimo disse...

É a realidade. O hospital pode ser a última esperança para o doente, mas é esperança. Esperamos sempre melhoras, mesmo em doenças "filhasdaputa".
Um lar é a antecâmara da morte. Ninguém lá entra à espera de sair um dia a correr e a saltar. Deve ser ainda mais dramático para pessoas cuja sanidade mental lhes permite ter a perceção desta triste realidade.
Eu gostava de viver até aos 500 anos, mas para viver assim, preferia morrer hoje. :/

ernesto disse...

Tal e qual.
Quando vão para um lar, sabem do que estão à espera. Sabem porque é que vão, e isso é tão mas tão triste...